A legislação brasileira precisa ser modificada para que as crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual não sejam revitimizadas durante a tomada de depoimentos nos inquéritos e nos julgamentos.
Os chamados operadores de direito (advogados, juízes e procuradores), que se reuniram em Brasília para um colóquio sobre depoimento especial, avaliam que o sistema jurídico está centrado na punição aos agressores, mas não considera os riscos de exposição da vítima nas investigações e nos processos.
Para o advogado José Humberto de Góes Júnior, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), há “violação de direito na apuração” dos crimes de abuso sexual. Em sua opinião, a falta de cuidado e de preparo da Justiça “aumenta a sensação de culpa quando uma criança é colocada como meio de produção de prova”.
Góes avalia que a filosofia do direito brasileiro transforma as vítimas em objeto do julgamento, para que testemunhem e forneçam provas a fim de que o Estado processe os agressores. “O que se quer? Proteger a vida ou condenar o réu?”.
Para Ana Maria Drummond, diretora-executiva da organização não governamental (ONG) Childhood Brasil, responsável pelo encontro, a lei brasileira é marcada por “uma visão muito antiga, na qual todo o crime é cometido contra o Estado e a sociedade”.
Ela espera que a Justiça adote de maneira generalizada as experiências do Rio Grande do Sul, de Pernambuco e Mato Grosso, entre outros estados, onde as tomadas de depoimento são feitas sem que as crianças e adolescentes fiquem diante dos agressores, juízes ou do juri e possam prestar as informações, em salas especiais, para psicólogos, pedagogos ou assistentes sociais preparados para esse tipo de prática.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deve acatar a proposta. Na próxima terça-feira (9), o conselho vota projeto de recomendação sobre depoimento sem danos. A adoção, no entanto, não será obrigatória. “Não adianta uma sala bem equipada se os profissionais não conhecem as especificidades de atendimento de um adolescente vítima de abuso”, disse Simone Moreira de Souza, do Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege).
O advogado Góes Júnior tem a mesma opinião e critica a “falta de sensibilidade e de preparo” de alguns juízes. Para ele, a prática de exigir, segundo o Código de Processo Penal, que as vítimas falem nos processos contraria a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.
A convenção, ratificada pelo Brasil afirma que “a criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos tem o direito”, mas não a obrigação de expressar suas opiniões livremente. “Com tal propósito, se proporcionará à criança em particular, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional”, estabelece a convenção.