“Quando meu pai morreu, minha mãe começou a trabalhar como doméstica. Toda tarde, eu e meus três irmãos tínhamos dois pães para dividir. Um dia, a nossa cachorra pegou o meu pedaço. Eu fiquei tão puto que mordi ela.” É assim que o rapper Emicida (25 anos) relembra a situação que batizou a sua primeira mixtape, “Pra Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe”, que vendeu mais de 12 mil cópias – todas gravadas de forma independente. Há seis meses, ele lançou ‘Emicidio’, sua segunda mixtape, que já chegou a 13 mil cópias vendidas. Hoje (4), ele apresenta suas rimas no Itaú Cultural.
Qual foi o seu primeiro contato com a música? No fim dos anos 80, tinha muito baile de rua na periferia. Meu pai discotecava em um deles e todo o material — como caixas, toca-discos e vinis — ficava em casa. Peguei o hábito de ouvir os discos. Não aprendi a fazer música assim, mas comecei a apreciar.
E quais foram as suas influências? Minha mãe escutava bons letristas, como Renato Teixeira e Chico Buarque. Eu comecei a prestar atenção nas letras. E, com o tempo, fui criando o meu próprio gosto. Comecei a pegar algumas coisas de Adoniran Barbosa, Cartola. Os caras do samba são as minhas grandes influências. Tem também o “monstrão” da interpretação, Ney Matogrosso. Cresci ouvindo coisas desses caras.
Como foi parar nas batalhas de improviso? Vi um anúncio no Orkut. Nem sabia o que ia rolar. Podia ser um negócio de roubar órgãos, mas foram umas seis pessoas, eu ganhei e embolsei R$ 5. Continuei indo. Ganhei R$ 7, depois R$ 9… Quando percebi, já estava nos R$ 16. O apelido Emicida surgiu nas batalhas, porque quando a gente ganha, falam que a gente matou o cara. Começaram a me chamar de homicida, mas eu disse que só matava os MCs. Aí ficou Emicida.
E como decidiu gravar a primeira mixtape? Eu estava fazendo muito barulho na internet, com mais de 1 milhão de acessos. Então notei que tinha que colocar algum trabalho físico na rua, porque quem gostava da música era meu refém. Se quisesse me ouvir, precisava ir no show. Não tinha como ouvir em casa.
Chegou a receber propostas de gravadoras para a segunda? Já rolaram propostas de três gravadoras. Apesar de respeitar o trabalho delas, não me interessa. Falando em rap nacional, eu sou a iniciativa mais bem sucedida dos ultimos tempos. Eu nunca vi nenhuma gravadora fazer algo parecido com um artista que eles tenham contratado. Eu já vi bombar um single, mas construir uma carreira eu nunca vi.
O que acha das comparações com o Mano Brown? Isso é zoado. Eu escuto Racionais desde que enasci, mas é horrível ser comparado a alguém, não importa quão boa essa pessoa seja. Tem gente que diz que sou o novo Sabotage, o novo Mano Brown. Para com isso, eu sou o velho Emicida.
Você já foi chamado de ‘promessa do rap’ e, agora, de “nome mais relevante do rap nacional”. Como encara isso? Tem gente que gosta de ser o “fulano do momento”, mas o momento passa e, no ano que vem, ele vai ser o quê? Quero completar 10 anos de carreira e ver que tenho uma história.
Como foi receber o convite para participar do Coachella [festival de música da Califórnia]? Foi muito louco. Tocou o telefone do escritório e o celular ao mesmo tempo. Eu atendi um, em que me chamaram para participar do Rock in Rio, e o meu produtor, o outro, em que recebi o convite para o Coachella. É uma parada histórica.
E como vai ser o show lá? Eu não vou arriscar músicas em inglês. Vou copiar alguns termos que vi em DVDs, como “make some noise” e “put your hands up”. Se eu tentar fazer outras coisa, vou fazer a gente passar vergonha.
E quando você percebeu que seu trabalho estava sendo reconhecido? Vi que a coisa tinha ficado mais séria quando eu comecei a aparecer nos jornais. Tem lugar que eu vou e nem sabem que eu canto rap, mas falam “olha o maluco que foi no Jô Soares”.
Depois desse reconhecimento, ainda sofre preconceito? Quando você é favelado, tudo fica limitado. São Paulo tem um apartheid invisível muito louco. Tem lugar que você não vê preto. Na semana passada, fui tocar no Fasano Rio e o segurança perguntou umas 15 vezes “boa tarde”, do tipo “o que você tá fazendo aqui?”. Sou marrento, não respondi e deixei ele me seguir. Era a coletiva do Rock in Rio. Quando cheguei, tinha um monte de repórter me esperando. Ele ficou morrendo de vergonha.
Você já foi taxado de trair o movimento? Esse bagulho é muito 15 anos. Se você não gostou do que eu fiz, o problema é seu. Se o que eu faço é bom pra mim e se é feito de forma honesta, não tem do que ter vergonha. 80% dos caras que falam do Marcelo D2 sentariam no colo dele pra estar onde ele está.
O que falta para o Emicida? Falta eu completar a coleção do Akira, de histórias em quadrinhos.
Você desenha, né? Isso começou na minha adolescência. Tinha uma época em que eu cabulava muita aula, andava com os moleques que usavam droga, roubavam e acabei repetindo dois anos. Minha mãe ficou muito decepcionada, tá ligado? O primeiro desenho que eu fiz e achei bom, mostrei para ela. Minha mãe estava magoada comigo e disse que eu “tinha que fazer mais desenhos legais em vez do monte de merda que eu estava fazendo”. E ela estava certa. Comecei a desenhar bastante. Fiquei viciado em histórias em quadrinhos. Queria ser desenhista. Mas comecei a conhecer a poesia, o rap. Quando percebi já estava nas batalhas.
Mais alguma coisa para 2011? Quero voltar a mexer com as histórias em quadrinhos. A parte de música está bem encaminhada. O problema é que quando a gente se livra de uma responsa abraça mais cinco, o que triplica o trabalho de todo mundo do escritório. Mas é o que o gostamos de fazer. Com certeza vamos construir uma parada muito louca ainda neste ano.
Itaú Cultural. Av. Paulista, 149, Bela Vista, 2168-1776. Hoje (4), 20h. Grátis.