O Laboratório Fantasma, na zona norte, escritório e estúdio do rapper Emicida, parecia ter sido revirado por um furacão naquela manhã de sexta-feira, no último dia 6. “Você se ligou que aqui tá um caos, né?”, diz ele, com a voz borrada de quem acabou de acordar. O quartinho, além de equipamentos de som, estava forrado por caixas, roupas em cabines, tênis jogados nos cantos. O sono e as olheiras são facilmente explicados. Na noite anterior, ele estreou a temporada de quatro shows com ingressos disputadíssimos e esgotados no Sesc Pompeia, ao lado do também rapper sensação Criolo.

Um bom começo de ano, após um 2011 dos sonhos. Leandro Roque de Oliveira, o homicida de MCs nas rinhas, batalhas em que os versos rápidos são armas, de 26 anos, desfilou seu rap ácido no megafestival Coachella (Califórnia), SWU e Rock in Rio. Lançou seu segundo álbum, Doozicabraba e a Revolução Silenciosa e foi destaque do VMB, em outubro, levando dois prêmios (Clipe do Ano e Artista do Ano). Mas o excesso de trabalho lhe traz um ressentimento: “A pior dor da minha vida é estar longe da minha filha”. Em entrevista ao JT, Emicida falou da sua filha, Estela, de 2 anos, da infância difícil, do universo do rap e da sua aversão ao álcool, que lhe tirou o pai aos 6 anos.

Não pude deixar de reparar que as coisas estão um tanto diferentes desde a última entrevista…
Preciso explicar isso aqui, né (risos)? Tá um caos porque estou mudando de casa. Vou morar aqui na Água Fria, pertinho do estúdio. Nessa casa nova vou ter um ateliê. Sempre quis ser quadrinista.

Você não queria ser rapper?
Nunca quis ser rapper. Eu improvisava por hobby, para zoar os camaradas. Eu tinha uns parceiros que curtiam rap, mas nunca me envolvi, só gostava do som. A minha parada era ficar trancado no quarto desenhando. No começo da oitava série, o desenho me levou para o grafite das ruas. De lá fui para a dança, o break. Tentei ser DJ, tudo era caro. Era mais barato ser MC (risos).

E o Emicida veio de onde?
Foi ainda no colégio. Quando cheguei nas rinhas eu já era Emicida.

No disco ‘Doozicabraba e a Revolução Silenciosa” você flerta com o samba. É algo que escuta?
É, cara. De tudo o que eu escuto, 70% é samba, 20% é rap e o resto é coisa de curioso. Sou fã de Moreira da Silva, Adoniran Barbosa, Bezerra da Silva, Cartola. Acho que a poesia do samba é muito rica e gostaria muito de me aproximar dela. Quero encontrar a simplicidade e a pureza dentro do rap. Para esse disco, eu tive aula de canto.

Falando nisso, o Criolo se aventurou pela canção e se deu bem…
Ele queria fazer isso há muito tempo, cara. Eu achei do caralho. A gente precisava de um disco como esse , não só na cultura brasileira, mas do hip hop. Não é algo que eu ambiciono para mim. As pessoas tendem a achar que começar a cantar é uma evolução, mas não. É só uma forma diferente de fazer a parada. Eu me sinto em plena evolução dentro do que eu faço.

Já é reconhecido nas ruas?
Eu esqueço, saio no meio das pessoas depois dos shows (risos). Às vezes não dá para vir de ônibus pra cá. Preciso pegar táxi.

Calma, você não tem carro?
Eu não consegui aprender a dirigir. A minha ambição era comprar uma casa. Agora eu vou ver se descolo um carro.

O que o VMB do ano passado, no qual você e o Criolo saíram vencedores, representou para o rap?
Foi uma injeção de autoestima sem tamanho para a nossa cultura. A rapaziada estava muito para baixo. Há alguns anos, ninguém imaginava que isso seria possível.

A morte do Sabotage (assassinado em 2003) foi responsável pela queda na autoestima?
Cara, foi um baque sem tamanho. Eu me lembro do dia da morte. Ele era o artista do momento, que estava abrindo as portas para todo mundo, que levava o rap pra frente, e acontece uma fatalidade dessa. A cultura inteira se retraiu. O nosso maior artista caiu. Ele virou uma lenda, mas a gente precisava dele aqui. O que faria a cena se aquecer seria um disco de inéditas do Racionais MCs, ou do Rappin Hood. Mas não aconteceu.

Você diz, na sua primeira mixtape, que mordeu um cachorro por comida. Isso aconteceu?
Aconteceu, cara. Foi uma fase triste e pobre. Meu pai tinha acabado de morrer e minha mãe era empregada doméstica. Mordi o cachorro porque ele comeu meu pão. É extremamente triste: uma criança mordendo um cachorro por um pedaço de pão. Agora virou piada. Comprei um cachorro e falaram: tá com fome? (risos)

Faltava muita coisa na sua casa?
Faltava tudo, parceiro. Era uma família de cinco pessoas, numa casa de um cômodo, com telhado de amianto, banheiro do lado de fora. Quando eu era pequeno, dissecaram um ET no Fantástico e eu fiquei com o maior medo de ir no banheiro, só fui de manhã.

Você canta sobre a falta do seu pai em ‘Ooorra…”. Sentiu falta da figura dele?
Eu tinha 6 anos, né? No começo, nem tanto, porque ele já tinha se separado da minha mãe. Só o via semanalmente. Só fui me ligar no ano seguinte, quando eu entrei na escola e as pessoas comemoravam o Dia dos Pais. Aí eu fiquei zoado, mal mesmo. E ele morreu numa circunstância bizarra, bêbado numa briga de bar.

E você bebe?
Não tenho o hábito. A bebida destruiu a minha família inteira. Todos os homens da parte do meu pai morreram por causa disso. O último foi o meu tio. Não consigo ver na bebida a parada festiva. Eu vi toda a destruição que a bebida causa na minha vida inteira.

Você também é pai. Com esses shows todos, não fica ausente?
Sou muito ausente. A maior dor da minha vida é não poder estar perto da minha filha e da minha mãe. Da minha esposa também, mas ela escolheu (risos). Quero ser o pai que eu não tive.

O Brasil é o país que você queria para ela crescer? Se preocupa?
Fico preocupadíssimo, depois que você é pai, você fica extremamente sensível a essas questões. Hoje eu noto como as coisas são, qualquer um consegue droga na esquina de casa, o sexo está banal. O que eu posso oferecer para a minha filha é sabedoria para discernir o que é certo e errado.

Você, por exemplo, acha que a maconha deve ser legalizada?
Eu não sei, o que acho é que o respeito ao usuário é fundamental. Tomei um enquadro da polícia na porta da minha casa. Um maluco com a arma apontada na minha cara. Isso tem que ser revisto. A gente tem uma sociedade hipócrita, ainda ficamos chocados quando os nossos filhos dizem que vão ser pais, ou que fumam maconha. Aí o mundo cai.

E se a sua filha quisesse fumar?
Se ela achar que é uma parada pra ela, cara… Eu conheço muita gente que fuma maconha e é sangue bom. Boa parte de quem trabalha comigo fuma. Eu sou a exceção. Eles falam pro filho deles: “Não quer fumar maconha? Beleza, vai ser igual ao tio Emicida.”

Eu vi que você colocou um versículo da Bíblia no seu Twitter.
Eu sou um curioso. Acho a Bíblia um livro interessante. Eu bebo de muitas fontes. Respeito as religiões e as fés de católicos, evangélicos. Tenho lá minhas discordâncias, mas acredito na fé das pessoas. “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância”. É João 10:10.