Quando sucedeu a seu amigo Darcy Ribeiro como ocupante da cadeira número 11 na Academia Brasileira de Letras, em 1997, Celso Furtado declarou que nunca pôde compreender a existência de um problema estritamente econômico. Para Furtado, toda questão econômica é também humana, ou seja, histórica, social e cultural.

O economista, que foi ministro do Planejamento durante o governo de João Goulart (a partir de 1962), também ocupou o Ministério da Cultura sob José Sarney (de 1986 a 1988). Nascido em Pombal (PB) em 1920 e formado em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (então Universidade do Brasil), Furtado foi um dos primeiros estudiosos a investigar o vínculo entre o desenvolvimento econômico e as manifestações culturais.

Mas seria um erro descrever Furtado como um economista que se interessou pelo problema da cultura. O mais correto seria afirmar o contrário: Furtado chegou à teoria econômica por meio de suas reflexões sobre cultura e história. “Celso sempre foi muito pluridisciplinar”, diz Rosa Freire d’Aguiar Furtado, viúva do economista e diretora do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. “Ele nunca separou a economia das outras disciplinas. Graças a isso, foi o descobridor da dimensão cultural do desenvolvimento econômico e do subdesenvolvimento.”

A evolução do pensamento de Furtado sobre economia e cultura, da década de 1970 até sua morte, em 2004, é explicitada no livro Ensaios sobre Cultura e o Ministério da Cultura, editado por Rosa. O livro acompanha sua trajetória desde o exílio parisiense, passando pelo cargo no governo Sarney e a participação na Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento da ONU (Organização das Nações Unidas), em 1994. Esse é o quinto volume de arquivos do economista lançado pela editora Contraponto, em parceria com o Centro Celso Furtado.

Expressões correntes como “economia da cultura” e “economia criativa” eram embrionárias, se tanto, quando Celso Furtado começou a aplicá-las, no livro Criatividade e Dependência na Civilização Industrial (1978), para entender o aspecto cultural do desenvolvimento econômico, no período que se seguiu à experiência na Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, em 1960), ao período no governo Jango e, enfim, à cassação pelo regime militar. “Essas expressões eram importantes para expressar o que havia de criativo na atividade econômica”, diz Rosa. “Ele queria ressaltar que a economia nada mais é do que o uso das forças criativas do ser humano. Não é a mesma coisa que fazer da economia criativa simplesmente um ramo da teoria econômica.”

“Comecei a perceber que, de três ou quatro anos para cá, as pessoas vinham procurar o arquivo para pesquisas de estudos culturais. Isso não existia no Brasil até muito recentemente. Foi por isso que resolvi fazer esse volume nesse momento”, explica Rosa. “Curiosamente, as pessoas me procuravam atrás de assuntos da cultura, e não da economia. Vai introduzir um bom material teórico para fomentar as investigações sobre a cultura no interior do desenvolvimento social e econômico.”

O papel das iniciativas culturais no funcionamento da economia se tornou uma questão ainda mais viva no período posterior à morte de Furtado. As discussões sobre a reforma da Lei Rouanet e a instauração do Procultura (Programa Nacional de Fomento à Cultura) puseram em questão os mesmos temas que Celso Furtado debateu ao longo de sua carreira. “É muito pertinente que o livro esteja saindo justamente agora, no meio de tanto debate”, afirma Rosa.

Durante a gestão de Furtado à frente da pasta da Cultura, elaborou-se a primeira lei de incentivo a essa área no Brasil, a chamada Lei Sarney. O então ministro apresentava a lei como uma inovação na política cultural brasileira, incentivando a participação da iniciativa privada no financiamento da produção cultural. “O objetivo último de uma política cultural deve ser liberar todas as formas criativas da sociedade”, disse o economista, explicitando a dificuldade de equilibrar o fomento à produção cultural que visa ao lucro (a chamada indústria cultural) e o fortalecimento da produção mais espontânea da população. Conciliar as duas vertentes era difícil e Furtado tinha consciência do desafio. “A nossa é uma difícil área de ação, pois tudo o que façamos sempre será insuficiente e objeto de crítica”, escreveu. “Mas nenhuma cultura se renova senão pela crítica.”

A Lei Sarney acabou revogada no breve governo de Fernando Collor (1990-1992), em que o Ministério da Cultura foi reduzido também a uma secretaria. O Brasil voltaria a ter uma lei sistemática para o fomento à cultura sob Sergio Paulo Rouanet, em 1991. “A Lei Sarney deve ter sido derrubada, em parte, por causa do nome. Em minha opinião, ela era até mais completa do que a atual, porque apelava muito mais para a própria sociedade. Era muito mais descentralizada”, afirma Rosa. Ela afirma que o próprio Ministério da Cultura não possui cópia de grande parte dos arquivos da passagem de Furtado, porque a extinção da pasta resultou em redução do espaço disponível.

O economista foi apenas a terceira pessoa a ocupar o Ministério da Cultura no Brasil, dois anos depois da publicação de seu livro Cultura e Desenvolvimento em Época de Crise. O primeiro titular da pasta foi o político mineiro José Aparecido de Oliveira, nomeado por Tancredo Neves, mas Sarney, ao assumir, preferiu deslocá-lo para o governo do Distrito Federal. O substituto foi Aluísio Pimenta, que só assumiu a pasta por poucos meses. Furtado era o único nome considerado capaz de resgatar um ministério ainda nascente, mas cuja existência a imprensa já questionava. Um abaixo-assinado subscrito por 176 pessoas, entre artistas, intelectuais e economistas, sacramentou sua indicação.

Segundo Rosa, a reflexão de Furtado sobre a cultura veio em quatro ondas. Nos anos 1970, o economista passou a sentir que o quadro da reflexão em economia estava muito pequeno. O resultado foi a redação de um curto texto que recebeu o título Que somos?, incluindo as “sete teses sobre a cultura brasileira”. “Naquele momento, ele nem de longe pensava que viria a ser ministro da Cultura”, conta Rosa. Nas teses, o economista situa a economia brasileira no contexto da expansão política econômica e, naturalmente, cultural da Europa no Renascimento, prossegue pela Revolução Industrial, a independência e as tentativas de desenvolvimento e industrialização do século 20.

Ao final, propõe políticas culturais que levem em conta essa inscrição da cultura brasileira. E pergunta: “Como preservar o gênio da nossa cultura, em face da necessidade de assimilar técnicas que, se aumentam nossa capacidade de ação, nossa eficácia, também são vetores de valores que com frequência mutilam nossa identidade cultural?”

O segundo momento em que textos sobre cultura aparecem em profusão foi o período do Ministério da Cultura. “Foi um momento muito entusiasmante, porque voltávamos ao Brasil no momento da redemocratização e de tentativas de estabilização financeira. O país estava trocando de pele”, diz Rosa. Além de assumir um ministério recém-criado, o economista também participou ativamente da elaboração da Constituição de 1988, em particular os capítulos que tratam de educação e cultura. “Todo o papel da sociedade estava sendo repensado”, lembra Rosa, “incluindo sua mobilização e sua cultura”.

O terceiro momento foi a Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento, convocada pela ONU em um momento muito particular: no início da década de 1990, todos os princípios do desenvolvimentismo em economia, dos quais Furtado era um dos principais expoentes desde o tempo em que dirigiu a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, entre 1949 e 1957), estavam sendo postos em questão. Em seu lugar, vinha a onda liberalizante que ficou conhecida como Consenso de Washington. Furtado foi o único participante brasileiro da comissão, cujo relatório final sublinhava o valor da diversidade criativa, contrapondo-se aos primórdios da globalização.

A particularidade do momento histórico está expressa em sugestões do próprio Furtado ao relatório final: as tensões entre as tendências históricas da globalização e a fragmentação das subjetividades culturais ou políticas; a agravação das desigualdades econômicas; o custo ecológico do processo de investimento e da inovação tecnológica e seus efeitos no plano internacional. As três sugestões foram aceitas pelos demais membros.

A última onda de textos corresponde à sua eleição para a Academia Brasileira de Letras, em 1997. Furtado frequentava os encontros de quinta-feira religiosamente, a não ser quando passava períodos na França. Era muito próximo de outros imortais, como Cândido Mendes e Evandro Lins e Silva. “Ele era chamado sempre que precisavam de alguém que escrevesse sobre autores de ciências humanas”, relata Rosa.

Embora não fosse ele mesmo um literato, segundo Rosa, Furtado chegou a afirmar que seu primeiro desejo era ser romancista. “Quando penso uma realidade, penso primeiro pela imaginação, depois pela análise”, disse. Comparando o estudo da história a uma obra de arte, capaz de inventar o próprio homem que estuda. “A lógica chega finalmente a ter unidade, sentido, através da própria invenção humana. E isso quem faz, admiravelmente, são os romancistas”, afirmou o imortal.

Os primeiros quatro volumes da coleção, lançados a partir de 2008, foram dedicados, respectivamente, à Venezuela, à economia do desenvolvimento, ao Nordeste e ao período em que Furtado ocupou o Ministério do Planejamento. “É difícil saber quantos volumes ainda vão sair na coleção”, diz Rosa. “Mas ainda tem uma barbaridade de papéis no arquivo. O próximo deverá tratar dos anos de formação, antes de Celso se tornar economista.”