O admirador que por acaso desejar visitar os restos mortais de Garrincha em Pau Grande, na cidade de Magé, vai se deparar com um cenário que sugere descaso com o mito do futebol brasileiro, três décadas depois de seu falecimento. O ex-ponta da seleção está enterrado no cemitério Raiz da Serra junto com outras quatro pessoas, num túmulo sem pompas, e seu legado espera pela conclusão de um mausoléu iniciado pela prefeitura local há 28 anos. Neste quadro, um impasse entre os herdeiros ajudou a complicar a burocracia da reforma.
A reportagem do UOL Esporte visitou na última segunda-feira o distrito de Pau Grande, região metropolitana do Rio, e constatou o estado precário do cemitério que abriga o corpo de Garrincha. Os restos do melhor jogador da Copa do Mundo de 1962 estão alojados em um túmulo simples, sem distinção, junto com outros familiares mortos. Mesmo assim atrai curiosos ocasionais do Brasil e principalmente do exterior. A filha Rosângela costuma fazer o papel de relações públicas do falecido pai e cobra melhorias em um dos pontos turísticos da cidade.
Em tempos em que se discute a manutenção do nome de Garrincha no restaurado estádio de Brasília para a Copa, a família do craque em Pau Grande manifesta ambições mais modestas. Os filhos ainda vivos do ídolo esperam que a proximidade no Mundial brasileiro ajude no anseio de oferecer aos restos mortais do pai um local mais digno.
Tudo começou em 1985, quando o então prefeito de Magé, Renato Cozzolino, começou a erguer um mausoléu para abrigar os restos do craque em um local de destaque no cemitério Raiz da Serra. No entanto, na oportunidade a família do jogador proibiu a transferência. Recentemente, a posição dos parentes sobre o tema mudou, e a reforma passou a ser considerada, embora o anseio não tenha sido transmitido ao poder público.
No fim das contas, o impasse deixou túmulo e mausoléu em estados lamentáveis. Quem visita o local em busca do descanso de Mané encontra lixo, restos de comida, mato alto e infiltrações. O mausoléu apresenta um punhado de tijolos, enquanto que as placas mal podem ser lidas, com os dizeres desgastados pelo tempo.
Mesmo com as discussões em torno dos desejos da família, as melhorias são esperadas e cobradas desde 2002. Nenhuma iniciativa partiu das gestões anteriores, mas, procuradas pela reportagem, a atual prefeitura e a administração do cemitério admitem uma manutenção até o final do ano.
“Não existiu manutenção até hoje. Não temos condições financeiras para reformar e, por isso, está assim. Acho que meu pai merece muito mais pela pessoa que foi e por tudo o que promoveu para o futebol. Era o mínimo que deveriam fazer. Não pedimos formalmente para a prefeitura, mas essa promessa existe há muitos anos. Falaram novamente que vão fazer uma manutenção, mas estamos aguardando”, afirma Rosângela, uma dos 14 herdeiros de Garrincha.
Rosângela conviveu pouco com o pai e soube que era filha do ídolo do futebol através de comentários de vizinhos. A confirmação veio somente após a realização de um exame de DNA nos anos 90. A moradora de Pau Grande então passou a assumir os interesses da família e assegura que a transferência dos restos mortais de Garrincha para o mausoléu é hoje uma decisão consensual entre os herdeiros vivos.
“As pessoas acham que recebo dinheiro falando do meu pai. Não ganho nada e só quero a valorização da memória dele. Todos que visitam o túmulo esperam uma coisa melhor. Muitas pessoas ficam tristes e choram. Dizem que precisamos das assinaturas para a transferência. Boa parte da família não quis tirá-lo de lá, mas atualmente a história é diferente. Recebemos visitas dos Estados Unidos, Inglaterra, Suécia, Espanha, Argentina, Uruguai… gente de toda a parte do mundo. Como podemos apresentar o túmulo de um ídolo assim? Fica complicado até de os fãs entenderem”, diz a filha.
Manuel Francisco dos Santos, lendário camisa 7 do Botafogo, morreu aos 49 anos em 20 de janeiro de 1983, derrotado na luta contra complicações do alcoolismo. “Aqui descansa em paz aquele que foi a alegria do povo”, diz a mensagem na lápide simples de Garrincha no cemitério de Magé. À época do enterro, as despesas foram custeadas pelo cantor Agnaldo Timóteo.
LANCHONETE REFORMADA POR GUGU PARA NETA SEGUE EM DIFICULDADES
No último mês uma das sobrinhas-netas de Garrincha ganhou uma reforma completa da lanchonete que administra com a tia em Magé, oferecida pelo Programa do Gugu. O estabelecimento recebeu decoração moderna, com imagens em referência ao craque da entrada aos banheiros. Mesmo assim, a herdeira de Mané ainda não viu a repaginada visual traduzida em faturamento.
O apresentador da Record foi pessoalmente entregar a lanchonete temática a Sandra. Batizado de “Garrinchinha”, o estabelecimento é localizado em uma antiga casa do jogador em Pau Grande, onde morou com a primeira esposa (Nair) e nove filhas. O bar eventualmente recebe visitantes estrangeiros.
Atualmente, a lanchonete conta com mesas estilizadas, souvenires, fotos e quadros sobre a carreira do craque. O estabelecimento recebe um movimento diminuto durante a semana, mas consegue se manter com a frequência dos fins de semana, principalmente após a divulgação com Gugu. É comum que visitantes entrem sem consumir. Ou seja, apenas para tirar fotos e levar recordações de Mané.
GARRINCHA BATIZA ESCOLAS E ESTABELECIMENTOS NA CIDADE
Garrincha segue como o principal assunto em Pau Grande 30 anos após a sua morte. Praticamente 100% dos estabelecimentos da pacata redondeza levam o nome do ídolo, de escolas a botequins, e sua imagem está mais viva do que nunca com a proximidade da Copa no país.
Mas, enquanto a questão do cemitério é discutida, a prefeitura de Magé programa a inauguração de um pequeno museu sobre Garrincha dentro do ginásio poliesportivo de Pau Grande. Ainda restam assinaturas de alguns herdeiros para que o projeto da sala de 17 m por 4,70 m saia do papel [de dez assinaturas, a prefeitura conseguiu apenas a metade das autorizações]. O espaço está reservado e também aguardando doações de amigos, familiares e figuras ilustres.
Por sua vez, no Esporte Clube Pau Grande, primeira agremiação defendida por Garrincha, o amadorismo ainda impera. O portão com as iniciais está apagado, mas o gramado bem aparado. O clube conseguiu viabilizar documentos para se legalizar e também costuma fazer parte do roteiro dos turistas que vão até Magé buscar a história de Garrincha. Um memorial do craque foi construído no espaço com apoio da Danone (R$ 70 mil) e de uma ONG.
O Pau Grande tenta se profissionalizar e contratou até uma empresa para zelar por sua imagem. Porém, o ambiente e os métodos são antigos, o que preserva viva a figura de Garrincha.
O “anjo das pernas tortas” disputou três Copas pelo Brasil e ganhou duas delas, em 1958 e 1962. No Mundial do Chile, com Pelé machucado nas primeiras partidas, saiu consagrado como o melhor da competição. Além do Botafogo, Garrincha teve passagens mais breves por Corinthians, Flamengo, Olaria e outros times de menor expressão.