No Brasil da ficha limpa, “não faz sentido” manter a homenagem a João Havelange, batizando com seu nome o Engenhão. É o que pensa o jornalista André Iki Siqueira, biógrafo de João Saldanha (1917-90), o nome que defende para substituir o do ex-presidente da Fifa no estádio carioca.
Para o jornalista, o problema não se limita ao território nacional. “O nome de João Havelange gera também um constrangimento internacional”, afirma nesta entrevista em que provoca: “Alguém imaginaria batizar um novo estádio em São Paulo com o nome de Paulo Maluf?”.
Siqueira é autor da biografia “João Saldanha, uma vida em jogo” (Companhia Editora Nacional, 2007). (Transparência: tive a sorte de assinar o prefácio do livro). Dirigiu com Beto Macedo o filme “João Saldanha”, que recebeu numerosos prêmios e saiu em DVD em 2012.
Foi um dos pioneiros na crítica à escolha do nome de Havelange para o Engenhão, quando o cartola ainda não renunciara à presidência de honra da Fifa em virtude de um escândalo de recebimento de propinas. A renúncia ocorreu em abril.
Hoje André Iki Siqueira escreve um livro e uma série de TV sobre a história do velho Maracanã. Biógrafo do botafoguense João Saldanha, o jornalista é vascaíno.
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Qual o problema com o nome de João Havelange no Engenhão?
Não é com o nome, é com a biografia. O futebol no Brasil e no Rio envolve milhões de pessoas, sobretudo crianças e jovens. É uma paixão nacional, arte popular, como dizia João Saldanha. O estádio é como se fosse um templo e o nome do estádio deve ser de alguém que seja uma referência ética, um exemplo de vida, de trajetória profissional ligada ao esporte.
Fico imaginando a seguinte cena durante um jogo no Engenhão. O filho pergunta ao pai quem é tal personagem e por que ele merece ser o nome daquele estádio…?
No Brasil de 2013, da ficha limpa, da luta pela ética, da Comissão Nacional da Verdade, não faz sentido manter uma homenagem, que pode ter sido simbólica no momento passado, mas, hoje, é imprópria. O país não vive mais na ditadura militar nem o Rio tem ditador. Com todas as denúncias, o processo na Suíça, por corrupção ou recebimento de comissão, como queiram, e o seu afastamento da FIFA e do COI, o nome de João Havelange gera também um constrangimento internacional. O Engenhão é um equipamento que será utilizado por essas entidades. Havelange sempre perseguiu esses cargos. Se não teve condições de permanecer na FIFA, que ele ajudou a construir, não deve ficar no Engenhão para sempre. Já foi homenageado muito tempo.
Eu defendo um nome honrado, limpo, íntegro, um democrata: João Saldanha, que foi vítima de Havelange na seleção brasileira de 1970, durante a ditadura Médici.
Sua proposta de mudança de nome para João Saldanha foi feita antes de Havelange ser denunciado por propina?
Sempre fui contra o nome de Havelange no Engenhão ou em qualquer outro equipamento público, por questões ideológicas. Respeito quem pensa diferente, mas eu penso assim e o meu campo é claro, sou um homem de esquerda. Alguém imaginaria batizar um novo estádio em São Paulo com o nome de Paulo Maluf ou de algum personagem que apoiou ou foi ligado à ditadura no Brasil?
Depois das denúncias publicadas no mundo e da sua queda anunciada e, posteriormente, confirmada, fiquei mais convencido do que nunca.
O importante, primeiro, é ter sensibilidade para desfazer a homenagem eterna e considerá-la uma etapa do Engenhão. O nome do João Saldanha surgiu naturalmente. Há outros bons nomes, mas João é o mais completo.
Aí, quando fecharam o Engenhão para reformas, sugeri aproveitar o momento e reformar também o nome do estádio para João Saldanha, provocando o debate.
Mas é jogo duro. Tenho consciência que será preciso coragem política e atitude para fazer a mudança. Significa enfrentar um grupo poderoso, que manda no esporte nacional há muito tempo. Por isso estamos vendo essa situação que parece que a bola tá queimando no pé de quem precisa resolver o assunto. Na hora da onça beber água, tem gente pipocando
Por que Estádio João Saldanha?
Eu sou suspeito, mas não faltam razões para defender João Saldanha. Homem apaixonado por futebol – não por cargos ou negócios; apaixonado pelo Brasil e pelo Rio, cidade que adotou nos anos 30, vindo do Rio Grande do Sul. Virou o mais carioca dos gaúchos, popular, idolatrado, profundo conhecedor do futebol, treinador campeão pelo Botafogo de 1957, de Nilton Santos e Garrincha; técnico que montou e classificou a seleção de 70 para a Copa do Mundo, com as feras do Saldanha; o comentarista que o Brasil inteiro consagrou; escritor de primeira qualidade, respeitado em todo mundo do futebol, por profissionais, imprensa e povo. Um homem que sempre esteve com sua vida em jogo na defesa do Brasil, da liberdade e do esporte.
Imaginem o pai contando para o filho quem foi João Saldanha. Não é uma diferença gritante de resposta?
E futebol é alegria, mas também é escola de vida.
Que iniciativas estão em curso para que ocorra a mudança?
A mobilização está ganhando força na internet, entre jornalistas, botafoguenses e até vascaínos, como eu. A ideia surgiu no ano passado e foi lançada pelo Núcleo de Estudos e Projetos Esporte e Cidadania. Há uma iniciativa dos vereadores Eliomar Coelho, Paulo Pinheiro e Renato Cinco (PSOL), que encaminharam um projeto de lei na semana passada. Alguns deputados estaduais – Marcelo Freixo (PSOL) e Robson Leite (PT) – e federais também estão na defesa do nome de Saldanha, incluindo Romário (PSB) e Chico Alencar (PSOL). O presidente da Comissão Estadual da Verdade (RJ), Wadih Damous já defendeu a troca de nomes.
Mas o prefeito Eduardo Paes, com todo respeito, pisou na bola em entrevistas recentes, quando disse que é uma decisão do Botafogo e não vai alterar denominações de instituições ou de áreas públicas por não concordar com a homenagem. Citou os exemplos de uma escola que leva o nome de Emílio Garrastazu Médici e do viaduto 31 de março. Respeito sua posição, mas discordo. Aliás, seria uma boa oportunidade, aproveitando a sua lembrança, para trocar também o nome da escola, porque Médici é um péssimo exemplo para os alunos, o general-presidente do período mais duro da repressão política. A história avança, novos fatos vão surgindo e é preciso rever posições.
Mas afinal, o Botafogo pode dar nome eterno para um equipamento da cidade e que é seu apenas temporariamente?
Espero que o prefeito, vascaíno, que gosta de futebol, reflita, mude de opinião e troque de João. Vai dar até mais sorte ao Engenhão. Em outro momento, vale lembrar, o prefeito trocou a Cidade da Música por Cidade das Artes…
Quem decide sobre a mudança, a prefeitura ou a Câmara Municipal?
Está na hora de alguém explicar definitivamente de quem é o poder e não correr da bola dividida.
E se um dia a Prefeitura do Rio transferir o controle do Engenhão para outro clube, como ficaria o estádio, batizado com o nome de um botafoguense?
João Saldanha era Botafogo doente, mas era de todas as torcidas. É apenas uma coincidência. O Engenhão não é do Botafogo, é da cidade do Rio de Janeiro. João Saldanha era respeitado por torcedores de todos os clubes do Rio e do Brasil. Gente que ele conquistou com a sua seleção de craques, com seu talento comentando e escrevendo e sua sinceridade, transparência. Um dos melhores brasileiros de todos os tempos. E lembrar que Havelange torce para o Fluminense e Mário Filho era flamenguista. O time não importa, o que conta é a folha corrida.
Com a série de aumentos de custo na construção do Engenhão e os alegados problemas com a cobertura, será que o nome Havelange não tem mais a ver do que o de Saldanha?
Havelange ficou sem cobertura…
O que João Saldanha, corrido por Havelange da seleção depois de classificá-la para a Copa de 70, estaria dizendo agora que vêm à tona tantas histórias sobre o antigo presidente da Fifa?
“Vida que segue…”. “Foi pro vinagre”.
Entendo que trocar João Havelange por João Saldanha seria um ajuste de contas histórico.
Que história sobre Saldanha você considera a mais engraçada em seu livro?
João era um personagem dramaticamente completo, prato feito para um bom ator interpretar. A vida dele teve de tudo: tragédia, drama, aventura, amor e comédia. O temperamento do João e as suas ações eram sempre imprevisíveis. Difícil escolher a história mais engraçada entre tantas, mas a clássica é a dos tiros no goleiro Manga. João falando sobre a briga e as versões das pessoas que entrevistei, contando o caso com detalhes diferentes, é de rolar de rir: a arma era grande, pequena, dourada, prateada; atirou para o alto, para baixo; Manga saiu correndo e pulou um muro de altura que variava entre metro e meio e três metros… João disse que esperou Manga, deitado embaixo de um Fusca!
João era muito engraçado, tinha um humor fino. Fico pensando como seria João Saldanha com internet, Twitter e Facebook. Dinamite pura.
E a mais comovente?
De todo o material que pesquisei, a imagem que me marcou mais foi a chegada do corpo do João, em 1990, no setor de cargas do Galeão, dentro de um caixote, recebido por poucos parentes e companheiros do Partidão. Um desrespeito absoluto, descaso e injustiça. João Saldanha merece todas as homenagens dos brasileiros.
E a frase definitiva do seu amigo Oscar Niemeyer, “João, quanta falta você nos faz!”.