Na sala de um apartamento em Pinheiros, zona oeste da “selva de pedra” que é São Paulo, o velho caçador está “camuflado” à minha espera. Sem conseguir enxergá-lo, sou presa fácil. Pude ouvir apenas o estrondo… Da voz grave de Jorge Alves Lima Filho que, mesmo aos 87 anos, demonstra, de maneira natural, que certas habilidades são natas e não se perdem com o tempo.

Somente ao se levantar da cadeira que Lima aponta sua presença na sala, portentosa por conta dos 1,90m de altura. Ele se resigna por não ter as mesmas visão e audição que salvaram-no de ataques de animais durante os mais de 20 anos que viveu na África. Em vez de um rifle, carrega uma bengala na mão direita.

Se movimenta com dificuldade por conta de uma cirurgia no joelho, mas seus olhos brilham como o marfim dos elefantes que caçou quando é perguntado sobre suas aventuras na “Mother Africa” (África mãe), como ele costuma chamar o continente.  São tantas que ele acaba de lançar o terceiro livro, “On the Tracks of the Big Five in Angola” (US$ 90 mais US$ 45 de postagem, que pode ser adquirido pelo siteKirongozi).

Em inglês, a obra narra, com riqueza de detalhes e vasto material fotográfico, a busca pelos cinco animais mais temidos de todos os caçadores: elefante, búfalo, rinoceronte, leopardo e leão. Atualmente ele trabalha na tradução para o português de seu livro.

Lima não tem dúvidas ao afirmar: “fui o primeiro caçador brasileiro na África.” Conta sobre os safáris que organizou na continente africano para celebridades e milionários do mundo todo, ataques de rebeldes moçambicanos, a contemporaneidade com Robert Mugabe, atual presidente do Zimbábue, tragédias e a co-produção de um filme premiado e dos animais selvagens, sua grande paixão. 

Em Álvaro de Carvalho, mantém um sítio com oito tigres e quatro leões por pura necessidade. “Ouvir aquele urro é como o rock para os jovens e Beethoven pra mim. Eu me sinto vivo”, revela.

“Viver em São Paulo é um sofrimento”, diz o homem que, em 1948, fez sua primeira caçada, na África Equatorial Francesa, hoje dividida entre os países de Camarões, Congo, Congo Central e República Centro-Africana.

O chamado das savanas

Na época Lima era um jovem de 22 anos que estava perto de se formar na faculdade norte-americana de Santa Bárbara, na Califórnia, mas sentia que seu coração batia em outro lugar. Especificamente onde ele costumava viajar com a imaginação quando, ainda com sete anos, ouvia seu pai ler revistas em inglês sobre as savanas africanas e suas temidas feras.

“Eu gostava muito de ouvir aquelas histórias. Aí fui levado pra lá pelo velho Fleischemann, aquele proprietário da fábrica de fermento, que morava em Santa Bárbara. Ele ia me levar para Indochina [hoje Vietnã, Laos e Camboja], mas havia uma revolta e acabei indo para a então África Equatorial Francesa, onde fui apresentado a um amigo deles que caçava”, relembra. Com um rifle nas mãos, teve a mesma sensação que o pianista Jerry Lee Lewis ao tocar um piano de maneira instintiva. Simplesmente sabia o que estava fazendo.

Gostou tanto que ficou por lá, para desespero do pai, o engenheiro Jorge Alves de Lima. “Naquele tempo a África era muito perigosa: muita doença, as tribos eram selvagens. Ele [pai] parou de me mandar dinheiro, mas eu sobrevivia com a venda de pele e marfim”, relembra o Kirongozi.

O apelido lhe foi dado em Moçambique e, na língua Kiswahili, significa “o grande caçador”. Surgiu durante as filmagens do documentário homônimo dirigido por Geraldo Oliveira e “bancado” pela empresa de safári de Lima. Como o diretor não dispunha do valor para o Safári, propôs uma parceria, aceita imediatamente por Lima. “Aquele prêmio Saci”, aponta para um canto da sala com duas presas de animais na parede e troféus sobre uma estante “eu ganhei com este filme, na categoria melhor documentário”, conclui.

Ataque das tropas de Savimbi termina em tragédia

Fundou, com o premiado nome Kirongozi, três companhias de Safári na África que atraiu clientes do mundo todo para a caça, como o rei Juan Carlos 1º, o magnata grego Stavros Niarchos e o produtor associado da Warner Bros à época, Oscar Brooks. Mas o que ia de vento em poupa, acabou em uma grande tragédia.

“Em 1969, invadiram meu acampamento central, em Angola, mataram meus empregados. Foi na época em que Angola teve uma guerra doméstica, dois partidos lutavam pela independência. Foi o pessoal do Jonas Savimbi (guerrilheiro angolano) que invadiu meu acampamento, matou meus funcionários e destruiu tudo”, relembra com certo desgosto.

Ele tinha deixado o país 15 dias antes do massacre, mas é surpreendente a resposta ante a pergunta de que esta decisão o salvou. “Que nada. Eu devia estar lá para ter morrido na África, pois eu nunca me adaptei a esta vida que chamam de civilizada”, lamenta Lima, apontando para a janela com a paisagem de prédios e trilha sonora de buzinas de carros.

Por desgosto, se desfez das agências de safári em Tanganika (hoje República Democrática do Congo) e Moçambique. “Financeiramente fiquei a zero, não tinha como voltar, pois o terrorismo estava implantado. Essa região se chamava ‘Terras do Fim do Mundo’, era riquíssima em fauna. Hoje, não há mais nada”, lamenta.

A volta do Grande Caçador

Ainda se aventurou na Índia, no início da década de 1970, caçando tigres, mas já não tinha ânimo para aceitar as propostas para coordenar safáris por lá. De volta ao Brasil, ainda se aventurou pelo Pantanal, mas se comoveu com a docilidade das onças e outros animais. “Por mais contraditório que seja, todo caçador é um grande amante da vida selvagem, ele não mata de maneira indiscriminada”, pondera.

Ele traz números da redução da fauna exótica africana. “Havia aproximadamente um milhão no século passado, hoje não passa de 20 mil. Foram destruindo tudo, os leões ficaram sem comida e atacavam gados com tuberculose, cachorros com raiva, enfim, tudo descuido do homem. É uma pena”, desabafa.

Agora, mata a saudades da vida selvagem com os animais que cria no sítio cujo nome, obviamente, é Kirongozi. Além dos tigres e leões, cria gado no local. “É uma necessidade ir pra lá, eu me sinto em casa”, confessa.

Jorge sobreviveu ileso às savanas… Ou quase

Entre todas as conquistas, carrega a história de nunca ter sido atingido por um animal. Ou quase. Durante uma expedição em Moçambique, ao abater um rinoceronte de maneira certeira, viu o animal perder velocidade e cair a poucos metros de seu pé. “Ali eu pensei que ele fosse me acertar”, confessa.

Se feriu gravemente durante um de seus safáris uma única vez, ao saltar de uma ribanceira para fugir de um aviso de ataque. “Estávamos no rastro de Búfalo, quando ouvi um barulho e o pisteiro [guia] gritou “kiboco”, que quer dizer hipopótamo. Quando eu saltei perdi a saliência do barranco, caí alguns metros e quebrei a tíbia e o perônio”, recorda.

Jorge Alves de Lima Filho se emociona ao comentar o que realmente lhe faz falta. “A África, os animais, as populações nativas, aquela gente fantástica e da minha vida. Mas hoje meu elo são estes animais na minha fazenda”, finaliza. As histórias fazem Lima voltar a sentir o gosto da aventura e lembrar que, mesmo com a idade avançada, sua memória ainda é como a dos elefantes que ele enfrentou nas savanas.