Decoradas com desenhos de princesas, as paredes do pequeno apartamento de um cômodo na periferia de Pequim são a única lembrança do conto de fadas sonhado pela faxineira Zhang Jiakou ao chegar à capital chinesa, há 14 anos.
Assim como outros 200 milhões de migrantes rurais do país, Zhang fugiu da pobreza em seu vilarejo em busca de uma vida melhor na cidade. Encontrou salários baixos e discriminação.
“Por mim eu voltava”, diz Zhang, que ganha cerca de 2.500 yuans por mês (R$ 900). “Mas meu marido continua achando que vai ganhar dinheiro. Migração é uma aposta arriscada.”
Por trás do sucesso econômico da China, milhões de migrantes como Zhang são condenados a viver como cidadãos de segunda classe pelo sistema de registro conhecido como “hukou”, que divide a população entre residentes urbanos e rurais.
Marcelo Ninio/Folhapress | ||
Vila de migrantes Dongshagezhuang, nos arredores de Pequim; a faxineira Zhang Jiakou, 34, mora com o marido e a filha |
A antiga promessa de abolir o sistema voltou a ser discutida com a a chegada ao poder da nova liderança do Partido Comunista, que tomou posse em março.
Depois de protagonizar a maior migração da história da humanidade nas últimas três décadas, a China se prepara para seu próximo salto.
O governo chinês espera que 390 milhões de pessoas deixem o campo rumo às cidades até 2030. As cifras das últimas décadas impressionam. Desde 1980, quando a abertura econômica dava os primeiros passos, a população urbana ganhou 700 milhões de pessoas e hoje já é mais de metade do país.
“Se continuar no ritmo dos últimos dez anos, haverá um bilhão de pessoas nas cidades até 2027”, diz Tom Miller, autor do livro “O Bilhão Urbano da China” (sem edição em português). “Um em cada oito habitantes do planeta viverá numa cidade chinesa.”
BARREIRAS
Mas a nova onda de urbanização resvala em velhas barreiras que ameaçam aumentar a desigualdade entre pobres e ricos, uma das fontes permanentes de instabilidade social no país.
A maior delas é o “hukou”, o registro de residência que nega aos migrantes rurais acesso a serviços públicos básicos nas cidades, como educação e saúde. O sistema já foi comparado por especialistas ao apartheid, o antigo regime de segregação racial da África do Sul.
Adotado em 1958 pelo Partido Comunista sob a tutela de Mao Tse-tung, o “hukou” visava evitar o êxodo de trabalhadores rurais e garantir a produção agrícola.
Com a abertura econômica iniciada em 1978, a mobilidade passou a ser permitida, mas os direitos sociais jamais foram igualados.
No momento em que a economia chinesa vive a maior desaceleração em duas décadas, o governo aposta na urbanização para ampliar o mercado de consumo doméstico e transformá-lo no principal motor do crescimento, reduzindo a dependência de exportações.
O plano fracassará se o governo continuar relutando em abolir o “hukou”, prevê Tom Miller. “Os migrantes vivem em bolsões de pobreza, ou em dormitórios de fábricas, e não se integram à vida urbana”, explica.
Segundo afirma Miller, os migrantes “não gastam em bens de consumo ou serviços, porque precisam poupar para financiar o estudo dos filhos e o tratamento médico de suas famílias”.
O maior obstáculo para a reforma é a oposição dos governos das cidades, que teriam que pagar a conta.
“Enfrentamos resistência de prefeitos e das elites urbanas. Isso está influindo na tomada de decisões”, disse Li Tie, diretor da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma. “Ninguém quer ter migrantes como vizinhos para dividir o chamado espaço civilizado. É um conflito de interesses”.
Há cinco anos em Pequim, o agricultor Sen Jialou, 51, teve que deixar o filho no seu vilarejo, na província de Shanxi (norte), porque não tinha dinheiro para pagar escola particular na capital.
Demitido há duas semanas do hotel onde era lavador de pratos, não tem onde morar. Dorme com a mulher numa estação de trem. Mesmo assim, não pensa em voltar.
“Aqui ainda posso ganhar alguma coisa. No meu vilarejo eu morreria de fome”, diz.