Uma turista norte-americana, diante do Masp, um dos internacionalmente conhecidos cartões-postais de São Paulo, pergunta: “Aquelas barracas ali fazem parte de alguma instalação?”.
As seis barracas erguidas ao anoitecer no vão-livre do museu –e desmontadas no alvorecer– não integram a mostra “A Terra Vista do Céu”, que ocupa a área externa, tampouco outra exposição.
Os abrigos de lona azul são a nova “casa” de um grupo com cerca de 25 pessoas, entre hippies, neo-hippies, desempregados, moradores de rua e usuários de drogas, que passam o dia todo no vão-livre do museu e dormem ali.
“A gente não atrapalha em nada”, avisa um dos novos “inquilinos” do Masp, Carlos Hugo Caires, 20, desempregado, recém-ingresso no universo do artesanato.
“É público”, enfatiza. “Estamos aqui para vender nossos produtos e moramos neste local pela segurança que a base da polícia, do outro lado da avenida, nos oferece.”
Há um ano, fugiu de Praia Grande após, segundo ele, ser ameaçado de morte por uma facção criminosa por suposto envolvimento com drogas.
Nesta semana, ele ganhou a barraca. Nela, dormem Carlos, o irmão dele, Tiago, 27, e outro “mano”. Instalados, aprenderam um novo ofício com a vizinhança: a confecção de anéis, pulseiras e colares, vendidos na calçada do museu. Renda? R$ 20 por dia.
Outros dois núcleos, um deles formado por um casal de hippies com uma criança, dividem as outras barracas.
Elas foram instaladas cerca de duas semanas após a Folha revelar que o tráfico e o consumo de drogas no local tornaram-se explícitos e despertaram a atenção do museu.
Por causa disso, o cancelamento da mostra chegou a ser cogitado. A Bonfilm, empresa organizadora, nega. Diz que a exposição segue até o fim, previsto para o dia 15.
Avener Prado/Folhapress | ||
Moradores de rua usam barracas para viver no vão livre do Masp, na avenida Paulista; cartão-postal abriga cerca de 25 pessoas |
BANHO NO ESPELHO
Quando concebeu a esplanada do clássico edifício que abriga o Museu de Arte de São Paulo, a arquiteta italiana Lina Bo Bardi idealizou seus 74 m como uma grande praça para crianças, famílias, com brinquedos e plantas.
“Não é nada disso”, afirma o advogado Nilo Júnior de Oliveira, 30. Há um ano e meio, ele trabalha na região da Paulista. Conta que o pessoal que vive ali toma banho nos espelhos de água. “Era para ser um ambiente agradável para aproveitar na hora do almoço. Não me sinto seguro ali.”
Marco histórico e arquitetônico do Brasil, o vão-livre está “abandonado”. “Tamanho desmazelo favorece a concentração dessas pessoas”, acredita o advogado.
Lembra que a área corre o risco de acabar negligenciada como a praça da Sé, que, de antigo passeio da elite paulistana, passou a concentrar moradores de rua, ladrões e usuários de drogas.
A estilista Aline Ribeiro, 30, há quatro anos moradora da região, diz que não tem coragem de pisar no vão-livre.
“Não se trata de preconceito ou de uma reação higienista”, conta. “Afinal, o espaço é público ou deles? E o meu direito de ir e vir, como fica?”
Em suas palavras, “a gente precisa deixar a hipocrisia e o politicamente correto de lado, que família ou turista se sente à vontade por ali?”.
Atrás das bilheterias, 30 passos à direita, colchão, mala, roupas, cobertores e lençóis sujos estão amontoados. Os paralelepípedos estão repletos de bitucas de cigarros.
O curador do Masp, Teixeira Coelho, diz que o vão-livre do Masp não é do Masp. “É da prefeitura; a ela cabe zelar pela área e decidir o que fazer. É uma pena o que acontece com uma parte do cartão-postal da cidade.”
Entre 2006 e 2007, o museu chegou a discutir com o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) o possível uso de uma cerca móvel, à noite. A proposta foi rechaçada pelo instituto.
Teixeira Coelho reafirma que não há no momento por parte dele ou da direção do museu nenhuma iniciativa para retomar essa ideia.
A Subprefeitura da Sé se limitou a dizer que mantém uma equipe de limpeza na região, encarregada dos serviços de varrição, lavagem e coleta de resíduos diariamente.
GAROTA DE PROGRAMA
Nos fundos do vão-livre, patricinhas, “noias”, engravatados e skatistas se igualam num ato: o de consumir drogas. Nos arredores da tenda da exposição, a fumaça da maconha se mistura ao forte odor de urina e fezes. O assédio de pedintes é constante.
O estudante de economia Kaique Muniz, 20, recorda-se com saudade da época de criança, quando o local era frequentado por grupos de alunos e professores.
“Infelizmente, não é mais um ponto turístico”, diz.
Nas 12 horas durante as quais a reportagem permaneceu no vão-livre anteontem, a Polícia Militar fez duas blitze: uma por volta das 17h30 e outra às 23h50. Nada encontrou e ninguém foi detido.
Disse um PM que ali trabalha: “O problema da área não é policial, mas, sim, social”.
A Folha presenciou venda de drogas no vão-livre e até na calçada do museu.
Entre as 16h e as 23h, seis rapazes, que moram no local, mas não em barracas, revezavam-se para buscar pedra e fumo “camuflados” na praça Nagib Ganme e no viaduto Professor Bernardino Tranchesi, bem atrás do Masp.
À 0h, as luzes da exposição “A Terra Vista do Céu” se apagam. A partir daí, a terra é de ninguém. É ali mesmo que uma garota de programa atende à clientela.