Descrever os horrores da guerra através do olhar das crianças. Foi com essa ideia que o artista e fotógrafo californiano Brian McCarty, 39, desenvolveu o projeto War-Toys. A partir de desenhos feitos por crianças palestinas e israelenses, McCarty recriou, por meio da fotografia e usando brinquedos como protagonistas, experiências vividas na Cisjordânia, na Faixa de Gaza e em Israel.

Com o apoio de organizações humanitárias –como o centro infantil Spafford, em Jerusalém Oriental, a Agência da ONU de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA, na sigla em inglês) e o Israel Trauma Coalition–, o projeto usa a arte-terapia para incentivar as crianças a compartilharem suas experiências, traumáticas na maioria das vezes. Então, com os desenhos em mãos, o fotógrafo faz uma peregrinação pelo comércio local em busca de brinquedos para recriar cada cena.

Depois da experiência no Oriente Médio, realizada entre 2011 e 2012, o fotógrafo agora se prepara para desembarcar com o projeto no Afeganistão e no Paquistão.

“Espero que a viagem ocorra até fevereiro. No Afeganistão, quero trabalhar com crianças afetadas pelo Taleban e pelas forças americanas. No Paquistão, estou particularmente interessado nas crianças que vivem na área do Waziristão, onde têm ocorrido muitos ataques de drones dos EUA e onde há um sentimento antiamericano forte. Sinto que é importante para as pessoas que vivem nos EUA conhecer os efeitos da guerra em um nível pessoal”, disse McCarty em entrevista por e-mail.

 Os planos futuros do artista ainda incluem Sudão e Colômbia, e ele também revela o interesse em um dia trabalhar no Brasil. “Espero receber convites de organizações humanitárias que atuem no Rio de Janeiro e em São Paulo, cidades muito interessantes para mim, cada uma com seus contrastes extremos e importância cultural”, disse McCarty, que afirma querer “explorar a guerra e o conflito em todas as suas formas, incluindo o ‘apartheid social’ e a violência relacionada ao crime organizado”.

Veja abaixo os principais trechos da entrevista.

UOL: Como surgiu a ideia de trabalhar com crianças em zonas de guerra?
McCarty: War-Toys começou em 1996, quando fui convidado a participar de uma exposição fotográfica em Zagreb, logo após a guerra de independência croata, e optei por fazer um estudo de brinquedos de guerra como artefatos culturais. Nos anos seguintes a ideia cresceu, e eu comecei a levar os brinquedos para experiências reais de guerra. Tornei-me consciente do uso da arte e de atividade lúdicas para tratar crianças traumatizadas em áreas de conflito. Em casos graves, esses meninos e meninas perdem a capacidade de falar por completo, e um terapeuta treinado e munido apenas de lápis e papel pode abrir caminhos para a comunicação e a cura. Com esses desenhos em mãos e com a grande variedade de brinquedos disponíveis em cada área de conflito, fiz essa ligação.

UOL: Por que você decidiu começar pelo conflito entre Israel e Palestina?
McCarty: Por uma série de razões. A terra tem sido disputada desde os primórdios da história. O conflito atual pode ser visto como um reflexo das falhas da natureza humana, um lugar onde há dois lados muito bem definidos, diferentes. De uma forma geral, War-Toys foi projetado para apresentar a realidade da guerra de uma forma mais digerível. Ao ser confrontada com imagens que mostram os verdadeiros horrores da guerra, a maioria das pessoas se afasta, literal e metaforicamente. Então eu espero despertar novas formas de pensar, ao menos um pouco.

UOL: Você tende a simpatizar mais com algum lado do conflito?
McCarty: Eu tento colocar minhas opiniões pessoais de lado e limitar a experiência do conflito ao ponto de vista das crianças, em qualquer lugar onde eu esteja. Isso significa que, independentemente de quem seja, quem está atirando contra as crianças (e contra mim também) é que é o “cara mau”, pura e simplesmente. Quando ataques aéreos atingiram Gaza, Israel era o inimigo. Quando foguetes caíram sobre a cidade israelense de Sderot, os palestinos eram o inimigo. No momento em que ocorre o trauma, a ideologia ou a bandeira pouco importam. Então eu escolhi ser o mais neutro possível no projeto. Por outro lado, quando as crianças expressam ideias e ideologias políticas, eu não as ignoro. Certo ou errado, são essas crenças que perpetuam o conflito por gerações. É importante apresentá-las.

UOL: O fato de ser americano trouxe dificuldades para você?
McCarty: Mesmo depois de encontrar um boneco do Osama bin Laden em uma loja de brinquedos de Gaza, posso honestamente dizer que não encontrei qualquer sentimento antiamericano, não em um nível pessoal, pelo menos. Há pessoas que têm sido muito críticas às políticas e às práticas do governo do meu país, mas sua raiva não foi dirigida a mim como indivíduo. Espero que continue assim.

UOL: Como é o trabalho com as crianças?
McCarty: Eu não sou psicólogo, então conto com o apoio de organizações humanitárias para conduzir as entrevistas e o processo artístico. Minha maior preocupação é com a segurança das crianças que participam do projeto, e o objetivo é contribuir com a recuperação delas à medida que compartilham suas experiências. Cada grupo é único, mas as sessões começam geralmente da mesma forma. O responsável local, que também atua como intérprete, me apresenta às crianças e explica o projeto. Então ele as convida a desenhar uma história sobre suas próprias vidas, e o convite é tão aberto que está sujeito a qualquer interpretação possível: ocasionalmente haverá uma história sobre um gato que vem à janela, mas na grande maioria dos casos as crianças estão ansiosas para compartilhar suas experiências de guerra e medo.

UOL: Fale sobre uma experiência marcante.
McCarty: Embora não seja a história mais feliz, uma dessas sessões acabou sendo extremamente educativa para mim. Uma menina ficou em choque com a foto que eu criei a partir do desenho dela, na qual usei um Playmobil segurando uma bandeira palestina em frente a um mural de Yasser Arafat. Por meio do intérprete, tentei defender a fotografia e seu conteúdo, pensando que tinha feito uma reprodução bastante fiel do desenho. Ela concordou, mas se disse chateada com o fato de o boneco não estar usando hijab (véu islâmico). A menina associou a imagem do brinquedo a si mesma de maneira tão forte que acabou se sentindo envergonhada. A partir daí, tive o cuidado de ser mais sensível, e foi então que “Fulla”, a “Barbie muçulmana”, começou a aparecer em algumas fotografias.

UOL: Quais os maiores obstáculos que você enfrentou?
McCarty: O acesso a financiamento tem sido um dos maiores obstáculos desde o início, e eu não acho que isso vá mudar tão cedo. De qualquer forma, tudo ficou mais fácil após a conclusão do primeiro volume do trabalho. Além disso, este não é o projeto mais fácil de articular em palavras, ele precisa ser visto para ser compreendido. Por exemplo, levei mais de um ano para ter acesso ao centro infantil Spafford. As organizações humanitárias têm muito cuidado com as crianças sob sua responsabilidade, e isso é absolutamente compreensível. Uma ONG israelense precisou de mais de dois anos e diversas reuniões para liberar meu acesso; nesse tempo, o governo israelense e seus diversos ministérios nunca retornou um telefonema ou e-mail.