Dois clubes criados por índios, no Brasil e no Equador, divulgam a cultura dos seus povos, atraem a atenção da mídia e fazem história ao estrearem em campeonatos de primeira divisão em 2014. Mas rejeitam se envolver nas causas indígenas.

No Pará, o Gavião Kyikatejê Futebol Clube tornou-se em 12 de janeiro o primeiro time indígena a jogar na elite de um Estadual. O Mushuc Runa Sporting Club se prepara para debutar no Equatoriano.

As duas equipes nasceram da iniciativa de integrar populações indígenas ao mundo do futebol e permitir que elas se mostrem ao resto da sociedade. Mas ambas evitam se misturar a antigas e recentes lutas políticas.

“Outros tipos de organizações sociais já fazem isso. O nosso é um projeto social, esportivo, financeiro e cultural”, disse à Folha o presidente vitalício do Mushuc Runa, o advogado Luis Alfonso Chango.

O cacique Zeca Gavião, que preside o clube paraense, recomenda “cuidado com protestos”.

“Tem que saber cobrar. A gente pode constranger pessoas que não têm nada a ver. Futebol não é momento de dizer algumas coisas. Não o usamos como instrumento para isso, não vou ser oportunista”, opinou. 

 O time equatoriano foi fundado em 2003 por indígenas que administravam a cooperativa de crédito Mushuc Runa, em Ambato, cidade de uma importante região comercial no centro do país.

O êxito da gestão e a capacidade de conduzir a equipe para a primeira divisão são a grande bandeira dos seus integrantes. Desde o início, eles queriam provar que os indígenas podiam exercer diversas funções sociais e afastar o rótulo de que se restringiam a agricultura, pecuária e artesanato.

A cooperativa financeira, aliás, surgiu em 1997 para atender as necessidades dos índios, que alegavam ser vistos como camponeses de pouca credibilidade, clientes de alto risco e nada rentáveis. O nome Mushuc Runa significa “homem novo”.

A partir de 2005, o clube aventurou-se na quarta divisão do Equador. Na terceira tentativa, subiu. Após três anos conseguiu ascender ao segundo escalão, onde passou duas temporadas. Para não dar vexame na primeira divisão, a partir de domingo, contratou três jogadores argentinos.

Só possui dois atletas indígenas, já que a presença deles não foi prioridade.

Já o Gavião demorou quatro anos para escalar não indígenas.

Nascido em 2008 como time amador da etnia Kyikatejé-gavião para os campeonatos municipais de Marabá, sagrou-se campeão e empolgou a tribo.

O cacique resolveu tentar a sorte na segunda divisão do Paraense. Na quarta participação, em 2013, deixou de ser treinador, aceitou reforços que não eram índios e obteve o vice. Na seletiva para a fase principal do Estadual de 2014, veio a classificação de forma invicta, decidida contra o conterrâneo Águia, da Série C nacional.

Restaram quatro jogadores profissionais indígenas: Aru, que marcou o primeiro gol da equipe no Estadual, Watiwaia, Júnior Suruí e Tássio.

O time estreou contra o atual campeão e maior vencedor do Paraense, o centenário Paysandu, no estádio da Curuzu, em Belém, diante de 2.460 pessoas. Sofreu o gol da derrota por 2 a 1 aos 46 min do segundo tempo. Mas seus cerca de 120 torcedores estavam orgulhosos no ônibus para a viagem de volta de mais de 9 horas.

Na estreia em casa, quarta-feira, no estádio Zinho Oliveira, em Marabá, com público de 1.873 espectadores, a equipe dos índios cedeu o empate por 1 a 1 aos 47 min da segunda etapa. No domingo, como visitante, ficou no empate sem gols com o Cametá.

TRADIÇÕES

A identidade é um conceito fundamental para Gavião e Mushuc Runa.

O time da província de Tungurahua representa “a cultura ancestral dos povos que habitavam o Equador originalmente”, disse Chango, que também é gerente geral da cooperativa.

Vestimentas típicas são exibidas no clube. Falam-se os idiomas espanhol e quéchua. Mas os rituais se resumem às festas, e outros costumes dos nativos não foram adotados. “Não há motivo, a maioria [dos jogadores] é não indígena”, justificou Chango.

O Gavião adota modelo diferente, mesmo com um elenco de forasteiros. Alguns atletas costumam jogar com pinturas indígenas no rosto, nos braços e nas pernas. “Alguns não indígenas também”, disse Zeca Gavião.

“O cacique queria que a metodologia de treinamentos incluísse costumes deles. Deu certo, nosso preparo físico é bom”, relatou o diretor de futebol Pedro Correia, se referindo à corrida com tora de madeira sobre os ombros e à esquiva diante de flechas com espuma na ponta.

O time se hospeda e treina na aldeia, a 34 km de Marabá. Mas dispensa as ocas. Dispõe de benefícios urbanos, como construções de alvenaria, saneamento e energia elétrica, além da proximidade com a natureza.

A ideia do clube é fortalecer sua comunidade e divulgar sua cultura. “Mostrar a saga de um povo, que vem lutando desde 1500 contra todo preconceito e discriminação, a falta de espaço”, afirmou o cacique.

“Tentamos mostrar paz, mostrar que estamos aqui, mostrar o que somos e podemos ser, que podemos conservar nossa cultura”, acrescentou.

O Censo de 2010 contabilizou mais de 800 mil índios no Brasil, o que corresponde a 0,4% dos habitantes. A Funai (Fundação Nacional do Índio) aponta cerca de 220 povos e 180 línguas indígenas no país.

No Equador, 7% da população –mais de 1 milhão de pessoas– se declararam indígenas. Lá existem aproximadamente 30 grupos étnicos com esta origem.