Enquanto estava sob o chuveiro, ouvindo Carmina Burana (quase sempre!) veio-lhe a lembrança um filminho (vídeo mais modernamente) que alguém postara na rede social, muito bonito e simpático. Lembrou-se então do seu primeiro voo, aos 41 anos de idade, em 1993, quando fora de Brasília a Vitória (ES), para chegar a tempo de assistir o velório de seu pai, que falecera em virtude de um enfarto fulminante. Reviveu a cena daquele domingo em que recebera a notícia, quando estava um tanto embriagado, sentado no carpete da sala do apartamento, pouco após ter chegado da comemoração do quarto, se não lhe falhava a memória – aniversário da Natália, filha de uma amiga dos tempos de bancário, a quem nunca mais vira nem tivera notícia. 

Naquela época ainda não tinha medo de avião e mais precisamente naquele voo, transtornado que estava com a morte do “seo” Pedro, ocorrida onze anos após a morte da mãe, esta ocorrida em Avaré (SP), onde visitou pela primeira vez seu túmulo no ano de 2013, ao passar por lá na primeira viagem de bicicleta. Em tal ocasião teve ciência da história da Branquinha, cadelinha sem dono, que acompanhava os sepultamentos ali realizados, sempre à frente do cortejo, e a quem erigiram uma estátua na frente do cemitério após sua morte. Humanos e caninos ligados post-mortem.
Do primeiro voo não se lembra de quase nada, talvez apenas do sobrevoo da Baía da Guanabara, pois o avião fizera escala no Rio de Janeiro, antes em Belo Horizonte, contrariando, em seu julgamento, a ideia de que de avião as viagens são mais rápidas, imaginando uma reta Brasília-Vitória… Até hoje insiste em chamar essa tal escala de baldeação, termo usado nos tempos das viagens de trem, quando, por exemplo, para se ir de São Paulo a Andradina ou Mato Grosso (sem norte ou sul, isso veio bem depois), fazia-se a baldeação em Bauru, passando-se do comboio da Companhia Paulista (de cor azul) para a Noroeste do Brasil (vermelha), apesar de essas cores não terem significados maior naquele tempo para ele.
O medo de voar surgiu em 2010, durante voo de volta de Sampa, para onde fora assistir a um show póstumo em homenagem a Itamar Assumpção com a Banda Isca de Polícia, entremeada com a participação de Naná Vasconcelos e Zélia Duncan. Morando na capital do País há muito tempo e, vendo quase que diariamente as notícias sobre violência urbana em Sampa, como grande parte da população adora fazer até hoje, ele se recordou que foi com certo medo ao Sesc Pompeia, mesmo estando na companhia do sobrinho, que conhecia a Paulicéia como a palma da mão, assim como ele conhecia o trajeto entre Brasília e Formosa-Goiás. O medo de voar se devia a já ter enfartado em 2001 e ter o coração remendado em duas artérias – as tais pontes de safena, como são popularmente conhecidas.
Naquele voo, com tempo chuvoso, aconteceram diversos episódios de turbulência na aeronave, o que sacolejava o avião e fazia o batimento do seu coração subir a níveis perigosos, ou no mínimo preocupantes, segundo ele mesmo avaliara. Numa situação dessas, ele temia sofrer um enfarto lá nas alturas e, na falta de socorro efetivo e imediato, morrer sozinho dentre os cento e tantos ocupantes do avião, que chegariam são e salvos – alguns mais ou menos assustados, porém todos vivos. E só ele na forma de cadáver. Achava uma injustiça, por isso deixou de viajar de avião, preferindo automóvel ou ônibus, se tiver pressa, ou ainda de bicicleta, se for uma viagem de introspecção e autoconhecimento.

*Técnico em informática e ciclista que pedalou por diversas cidades do estado de São Paulo.