Considerado crime pelo Código Penal, o aborto só é permitido no Brasil em casos muito específicos: se não houver outra forma de salvar a vida da gestante; em gravidez decorrente de estupro e em situações de diagnóstico de anencefalia. Nessa última janela legal, aberta após posicionamento do Supremo Tribunal Federal em 2012, fala-se em antecipação terapêutica do parto.
De acordo com o Ministério da Saúde, em 2012, o número de óbitos de mulheres em consequência de aborto era a 5ª maior causa de mortalidade materna. A despeito de ser um gravíssimo problema de saúde pública e de conhecimento amplo de brasileiros de norte a sul, até hoje não travamos um debate sério e consequente, tanto nas esferas políticas quando no meio da sociedade, sobre a descriminalização nem sobre políticas de Estado para reverter esse quadro trágico.
Do ponto de vista do profissional de medicina, ainda hoje há insegurança sobre como agir diante de uma solicitação de aborto, já que, se o fizer fora das exceções previstas em lei, em primeira vista estaria vulnerável a ser criminalizado. O médico então deve ou não manter sigilo em uma situação dessas?
Registro que o CEM (Código de Ética Médica) dedica seu nono capítulo exclusivamente à questão do sigilo. Ademais, o capítulo 1, base para todo o CEM e para o exercício ético da medicina, estabelece o seguinte em seus artigos I e II: medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza; o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.
O Código Penal também dá amparo ao médico na questão do sigilo. O artigo 154 compreende como crime “revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”.
A lacuna deixada pela expressão “justa causa” possibilita ao profissional de medicina contatar a polícia ao receber uma paciente vítima de arma de fogo, por exemplo, até por não saber se o crime ainda está acontecendo, ou se o ferido é o responsável pelo crime.
Entretanto, o mesmo princípio não dá guarida legal em situação de aborto. Inclusive porque, segundo o artigo 2º da lei nº 10.241/1999, é direito dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo “ter resguardado o segredo sobre seus dados pessoais, através da manutenção do sigilo profissional, desde que não acarrete riscos a terceiros ou a saúde pública”.
Fato é que uma denúncia criminal de paciente que fez aborto apresenta complicador fora da esfera legal. Cria-se apreensão no gênero feminino, ampliando a chance de a mulher recorrer a clínicas clandestinas e de a mortalidade aumentar ainda mais.
Estimativas da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) dá conta que 900 mil abortos são feitos no Brasil anualmente. Em 2013, o SUS registrou somente 1.523 procedimentos legais.
Não resta dúvida de que o sigilo médico é consagrado e respaldado legalmente. Portanto, ao profissional, cabe honrar o Código de Ética sob o risco de cometer infração grave. Quanto à questão social do aborto, já passa da hora de nos despirmos de preconceitos e debater a questão à luz do bem-estar das mulheres e da cidadania.
*presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo.