Jean Marcel Carvalho França*
Ricardo Alexandre Ferreira**
A produção e a transmissão do conhecimento histórico, como tudo no país, parecem caminhar ladeira abaixo. O problema aí, ao menos aparentemente e olhando com olhos benevolentes, não é o desvio de verbas, o enriquecimento ilícito ou as licitações viciadas, mas coisas ligeiramente mais espirituais e abstratas: o pedagogismo e o terceiro-mundismo.
O pedagogismo, se isso serve de consolo, não é uma praga que atinja somente os futuros historiadores, o mal contamina também os futuros químicos, biólogos, geógrafos, matemáticos, em suma, todo e qualquer egresso de um curso de licenciatura das universidades brasileiras. Em São Paulo, desde a entrada em vigor da Deliberação CEE n° 111/2012 — uma lei em larga medida discutida por pedagogos, elaborada por pedagogos, redigida por pedagogos e que dá a impressão de ter como objetivo maior aumentar a empregabilidade de pedagogos —, as licenciaturas, sem qualquer margem de manobra e independente dos seus resultados anteriores, viram-se obrigadas a conduzirem-se por uma lógica muito peculiar, a saber: mais vale ao licenciado dominar um sem número de técnicas de comunicação –– todas de resultados no mínimo questionáveis ––, do que os conteúdos das disciplinas que estruturam o domínio em que escolheu obter a sua graduação.
Respeitada lógica tão bizarra, ao término de seu curso, o licenciado dominará muitas técnicas para transmitir um conhecimento que ironicamente ele não domina. Teríamos, e durma-se com um barulho desses, químicos que sabem modos de ensinar química, mas conhecem vagamente a própria química, historiadores da África que sabem milhões de técnicas para ensinar história da África, mas não têm a mais remota ideia do que seja história da África, e por aí vai. Exagero? Leiam a letra da lei e tirem suas próprias conclusões.
O curioso, e certamente isso se deve ao acaso, pois racionalidade e articulação não são virtudes que cultivamos por aqui, é que esses licenciados dotados de muitas técnicas de entretenimento parecem servir como uma luva, ao menos no domínio da história, à Base Nacional Comum Curricular e aos seus princípios lúdicos, coletivistas, antiliberais e orgulhosamente terceiro-mundistas. Aqui como lá se promovem inversões aparentadas: lá quer se dotar o licenciado de técnicas para ensinar conteúdos que não domina, aqui se quer privar o discente, desde a mais tenra idade, de ter contato com a história daquela cultura que lhe deu os instrumentos necessários para compor, reconhecer e valorizar a sua própria cultura.
Ora, todos sabemos que a exaltação das minorias, a crítica ao eurocentrismo, as discussões de gênero e a cantilena multiculturalista que povoam a proposta de história do BNCC não surgiram pioneiramente numa recôndita comunidade africana, nas sociedades mulçumanas guiadas pela sharia ou entre os pensadores de um dos muitos movimentos sociais da América Latina. Tais ideias, ao contrário, surgiram, sim, em instituições de ensino e pesquisa de países como a França, a Inglaterra e a Alemanha e, gostemos ou não, são produto da história das civilizações que floresceram no Ocidente.
De um modo, pois, contraditório e um tanto perverso, os autores da proposta de história do BNCC lançam mão de argumentos elaborados por intelectuais europeus para privar os nossos jovens do conhecimento da história das sociedades europeias e fomentar neles um nacionalismo excludente, ressentido e obscurantista.
Numa época caracterizada justamente pela vastidão, diversidade e complexidade do conhecimento histórico, o que vem proposto para a disciplina no BNCC é, sem dúvida, um caminho seguro para que o jovem brasileiro continue a entrar pela porta dos fundos no mundo do saber globalizado. Isso é certo. Incerto é saber se isso tudo é movido pela mais crassa ignorância, pelo esquerdismo católico que caracteriza uma parte da intelligentsia brasileira, pela adesão tardia e exagerada às modas multiculturalistas ou, simplesmente, o que é bem mais triste, pelo apego cego a um ideário moribundo bem latino-americano que, na falta de um nome melhor, tem sido denominado bolivariano.
*professor de História do Brasil da Unesp de Franca.
**professor de História Moderna da Unesp de Franca.