Para compreendermos de forma mais profunda, histórica e estrutural os impasses da economia, sociedade e política brasileiras, é necessário relembrar como atingimos o atual estágio. Um aspecto a ter em mente é que o processo de interrupção do crescimento industrial do país provém de 1980-81 e, de forma mais decidida, de 1990, com a primeira grande apreciação da moeda nacional, sob o Plano Collor, que indicou o rumo que o país tomaria, em aspectos essenciais, nos anos seguintes.

Esta sobreapreciação, que decorre de uma maior despreocupação com a indústria do país, iria se repetir no início do Plano Real, nos governos Itamar e FHC e, posteriormente, com Lula e Dilma. Tal sobreapreciação, repetida e quase permanente, é acompanhada por juros elevados sobre a dívida pública e, de forma muito mais acentuada, sobre os créditos ao setor privado, o que mostra um outro indicador da crescente desimportância que a indústria e os ganhos conseguidos no setor produtivo assumem. A estes vem somar-se a estrutura fiscal ineficiente – mas igualmente estável, em sua progressiva disfuncionalidade –, assim como a do câmbio e dos juros. Passa-se, assim, crescentemente a “se ganhar dinheiro”, no Brasil, via os setores primários (mineral e agropecuária) ou a eles ligados, ou via comércio, serviços financeiros e aplicações na dívida pública nacional.
Os sucessivos Governos Federais não mais se empenham em proteger ou estimular macroeconomicamente a indústria, ao mesmo tempo em que os industriais (e FIESP, CNI, etc.) tornam-se cada vez menos relevantes politicamente, enquanto o câmbio sobreapreciado aproxima as classes alta e média dos importados e de Miami. Considera-se que aqui não há o que proteger, com notórias exceções, em termos de eficiência produtiva. Quando os custos produtivos ultrapassam os da China (ou de outro país), passa-se rapidamente a comerciar produtos importados, às vezes apenas com alguma maquiagem que os faça parecer nacionais, assim como no caso dos high-tech – na verdade, em muitos casos, japoneses ou coreanos.
Os empresários passam, então, a ser cada vez mais importadores e comerciantes – ou voltam a isso, em termos familiares –, visto que não têm muito o que proteger, em termos de qualificação de mão de obra, pessoal mais especializado ou mesmo organização produtiva empresarial. E crescentemente passam a obter ganhos em aplicações financeiras e/ou em especulação cambial – por isso o câmbio deve flutuar excessivamente. Deve-se ganhar o máximo, nas poucas atividades produtivas, ou nas comerciais, financeiras, etc., com mark-ups desconhecidos no mundo civilizado – o que está ligado a baixos salários e à desigualdade econômica, social e política fundadoras do país – e reaplicar esses ganhos, e aqueles obtidos de especulações com câmbio e títulos públicos, neste circuito.
Esse jogo todas as empresas líquidas, de todos os setores, realizam no Brasil, ainda mais do que em outros países – é assim, essencialmente, que aqui se rentabilizam capitais. A estrutura fiscal “ineficiente” serve a isso, sobretudo, como um meio de transferência de uma carga tributária elevada e desigual, que recai sobre os desfavorecidos, em sentido amplo, e flui aos detentores da dívida pública. Com o que sobrar, após ultrapassar um mar de ineficiências em que mais um grande número de agentes se locupleta, pode-se realizar algo útil à economia e sociedade brasileiras, o que também não é uma preocupação séria de grande parte do país, visto que a desigualdade contumaz e feroz é característica essencial do Brasil, desde o descobrimento. Ou seja, o sistema fiscal e o financeiro a que ele se liga servem para remunerar de forma indecente os capitais não produtivos, inclusive estrangeiros, e para isso é essencial manter a conta de capital totalmente aberta, sem restrições mais relevantes, além de uma institucionalidade anti-inflacionária que basicamente exige um comportamento assaz ineficaz, em termos de crescimento, dos governos e ocupantes de cargos mais importantes no Banco Central – também por isso presidentes do Banco Central do Brasil ganham prêmios internacionais e são cotados para governos de Estados ou do país.
A desatenção com gastos e ganhos em produção e investimento produtivo decorre também de uma industrialização menos decidida e agressiva por parte do capital nacional, o qual não permitiu ao Estado maiores exigências quanto a exportações, qualidade e competitividade, ao contrário do que fizeram vários governos asiáticos que invejamos. O Estado brasileiro foi capturado por estes industriais, desde sempre, a fim de não ser muito agressivo, na busca por competitividade e expansão internacionais, com honrosas exceções, da mesma forma que, após 1990, passa a ser comandado crescentemente pelo setor financeiro.
O atual “ajuste fiscal”, que os perdedores da última eleição presidencial também realizariam, então se explica: em termos fiscais, não ajusta nada, antes pelo contrário, a situação fiscal vem se deteriorando, como era esperado pelos mais “expertos”, mas permitem-se ganhos ainda mais espetaculares aos agentes líquidos, que são sobretudo os do setor financeiro. Os juros aumentam, o câmbio volta a flutuar muito, os salários caem e os mark-ups e o desemprego sobem. Todos os candidatos iriam fazer o mesmo e isso se chama controle político total, ainda que a vencedora tenha afirmado que não o faria e, como visto, não o devesse ter realizado. Ademais, os preços de vários ativos despencam com tal recessão provocada por mãos-de-tesoura, proporcionando maiores oportunidades de ganhos aos agentes líquidos. E não há quase o que se proteger: nem setores ou lucros produtivos, nem empregos, nem salários, etc. O país não se preocupa, no geral, com isso – nosso Estado é fraco e capturado –, apenas com estes ganhos que ampliam a desigualdade do país e o jogam a um crescimento lento, que já dura 35 anos e não parece ter nenhuma possibilidade de ser retomado. Não há forças sociais ou políticas para isso. Elas têm que ser (re) construídas.

*professor livre-docente do Departamento de Economia da Faculdade de Ciências e Letras do Câmpus de Araraquara da Unesp.