Epidemias rondam a nossa vida. De forma recorrente, elas ameaçam nosso cotidiano, e deixam seu rastro de mortes e sequelas. Houve uma época – entre 1940 e 1970 – em que a humanidade acreditou que vacinas e antibióticos haviam vencido a batalha contra as doenças infecciosas. Aids, hepatites, Ebola e “superbactérias” destruíram o mito da vida sem riscos. No presente, a ameaça à nossa porta é um monstro de três faces – dengue, chikungunya e zika.
Em um romance célebre, Albert Camus afirmou que nunca se sabe quando “a peste acordará seus ratos (…) em uma cidade feliz”. Hoje, quem tira o nosso sono não são os roedores, mas um terrível mosquito que soube se adaptar ao nosso modo de vida. Em termos simples, o Aedes aegypti depende dos seres humanos para sobreviver. Somente nas cidades é possível encontrar os reservatórios de água limpa nos quais suas larvas se desenvolvem. Além disso, suas fêmeas precisam de sangue para se tornarem férteis.
No século XIX e início do século XX, a presença do Aedes nos centros urbanos estava associada a epidemias de uma doença gravíssima – a febre amarela. Uma ação agressiva para controle dessa doença erradicou o Aedes do Brasil em 1955. Mas ele retornou na década de 1970, e parece impossível vencê-lo. O que mudou? Muito mais do que aparenta á primeira vista. A urbanização desordenada, a produção descontrolada de resíduos sólidos em uma vasta gama de comportamentos que geram acúmulo da “água parada” forneceram ao Aedes residência permanente em nossas cidades.
Como, portanto, enfrentar nosso atual pesadelo? Centenas de milhares de casos de dengue foram diagnosticados em 2015. Embora a letalidade possa parecer baixa – uma morte a cada 2.000/2.500 casos – em termos absolutos correspondeu, em uma comparação trágica embora verdadeira, à morte de vários acidentes aéreos de grande porte. A principal sequela da infecção pelo vírus zika, a microcefalia, atinge de forma cruel a população mais frágil, agredindo os mais básicos sentimentos humanos, relacionados à maternidade e paternidade. A febre chikungunya ainda é restrita a alguns estados, mas mostra disseminação preocupante. As dores articulares associadas a essa doença são incapacitantes, e áreas acometidas sofrem com grande absenteísmo em locais de trabalho e escolas.
Como podemos combater a chamada “tríplice epidemia”? Não há respostas simples, mas um caminho é claro. Ele inclui vigilância, controle de vetor, diálogo com a população e pesquisa. A vigilância epidemiológica permite identificar a distribuição geográfica dos casos, grupos populacionais mais vulneráveis a fatores associados à gravidade e sequelas. Ela colabora para intensificação do controle do Aedes, apontando para situações que exigem ação imediata. Um aspecto importante desse controle é a ecologia do mosquito. Ao longo de sua curta vida, ele dificilmente se afasta mais que 100 metros do local onde nasceu. Por essa razão, o bloqueio representado pela eliminação de focos do mosquito em uma área com raio de 200 a 500 metros é eficaz para interromper uma cadeia de transmissão. Repelentes são importantes, mas a ênfase nessa medida individual – em detrimento da eliminação do mosquito – não ajudará a controlar as três viroses. O que é realmente necessário é trabalhar para que nossas residências não alberguem esse hóspede incômodo. Reacender as mais antigas redes sociais – família, vizinhança, bairro. Cobrar ação do poder público – é claro – mas também exercer nossos deveres de cidadãos.
A questão de comunicação traz à tona a “quarta epidemia”. Ela envolve medo e desinformação. Teorias da conspiração se alastram nas redes sociais, prestando um desserviço à saúde pública. Precisamos manter um diálogo claro e estimular a confiança entre população, especialistas e autoridades.
Deve-se encontrar um caminho que evite a negligência (pois existe de fato uma situação preocupante) e o pânico (que paralisa nossa resposta). E é nesse contexto que a iniciativa dos pesquisadores nacionais e de outros países de se por a serviço da saúde coletiva é uma boa notícia. No já citado romance de Camus (A Peste), o autor conclui que epidemias mostram que “nos homens há mais coisas a admirar que a desprezar”. A união entre ciência e saúde pública é um desses aspectos admiráveis, que no passado permitiu o controle de outras epidemias e no presente nos enche de esperança.
*Professor adjunto – Departamento de Doenças Tropicais da Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp.