Eu acordava com o som desesperador do celular no dia sete de janeiro de 2015, sem entender a realidade à minha frente. Meus olhos cheios da areia do sono, minhas orelhas ainda virgens do dia, não estavam prontos para todo aquele som e fúria. Li mensagens desesperadas, acessei notícias, me desesperei diante de um enigma incompreensível. Nunca entendi.

Naquela manhã incompreensível daquele incompreensível dia, meus pais e familiares se derretiam em desespero. Eu, estudante de Letras em intercâmbio Unesp – Sorbonne, estava agora sobre solo ferido, meus passos tocavam um chão que ardia e pulsava o sangue de todos.
Todos foram atacados, não só o Charlie Hebdo. Doze mortos e quinze feridos foi a maior mentira daquele dia, maior eufemismo do jornalismo, que logo depois foi corrigido. Todos uniram mãos e canetas, gritaram com lábios e dedos engajados, choraram água, sal e tinta e havia sangue naquelas mãos, naqueles lábios, naqueles olhos. Foram dias vermelhos.
Naquele sete de janeiro, eu estava com dois primos me visitando, judeus em nome, documentos e sangue, que passeavam no horário do atentado. O medo deles serem encontrados nas ruas pelos cegos que cometeram o massacre me massacrou por completo. Eu, mãe que se desespera, orei pelo retorno dos dois para um Deus que deveria estar com a caixa de entrada abarrotada de desesperos. Eles voltaram, nem sãos, nem salvos, mas voltaram. E eu, que tenho sobrenome árabe, pele opaca e marrom, olhos do mais negro abismo, cabelos raivosos como as ondas negras de uma ressaca, temi ir para qualquer lugar. Mas precisava sair de casa: era a época dos exames e provas da Sorbonne e o caminho da minha casa para lá era intumescido de contatos sociais em quarenta minutos de metrô ou ônibus e cinco de caminhada.
Foi nos metrôs que conheci o terror. Nos olhos, em todos os olhos (aliás, tudo era olho) daquele espaço confinado, havia uma câmera atenta e hipocondríaca. Os movimentos eram todos pálidos de medo, as faces buscavam o chão ou o apoio de falsas leituras em jornais e livros: nós todos sabíamos que os olhos não aguentariam mais ler nada, apenas repousar em algumas letras pretas, procurando a solidão e alguma paz impossível. Ninguém, no metrô, era irmão. Qualquer estalido dos comboios era tiroteio. Qualquer som metálico do piloto nos alto falantes enferrujados era alerta. Qualquer bolsa ou mochila era bomba.
Na Sorbonne e em todos os lugares, seguranças tinham todo o direito de nos apalpar e nos olhar nos olhos, o que era a maior invasão, ambos os lados temerosos. Nós: temerosos deles terem que fazer seus trabalhos; eles: idem. E eu, que tinha a barba rebelde e mais dois amigos de barbas rebeldes e peles de problema social, um nem tanto, mas outro feito de mogno como eu, sentia o desespero dos olhares para essa plausível gangue de estudantes da Sorbonne, com plausíveis micro bombas entre livros empoeirados e ultrapassados. Essa gangue de barba e cor que falava uma língua proibida, uma língua estranha e não-francesa, num momento em que tudo que era não-francês era arriscado.
Eu temi, assim como todos. Temi por mim e pelos outros, pelos que eu amava e pelos que eu nunca vi o rosto na vida. Constantemente precisei dizer que ainda respirava para meus familiares e que meu corpo estava completo, ainda que a alma peneira. Durante esse período eu nunca ouvi a junção das palavras “Charlie Hebdo” em lugar nenhum. Era uma palavra proibida que trazia desespero nos olhares e espinhos nas gargantas. Nunca ouvi ninguém falando sobre esse neo-tabu, esse absurdo intrigante. E quando precisei falar sobre isso com meus amigos brasileiros, fazíamos questão de abrasileirar o nome francês, escarrando na pátria que nos acolhia para nos protegermos em nosso manto verde amarelo.
A França toda pulsava, Paris era um coração ferido que pedia mais e mais sangue e o mundo inteiro era uma bolsa vermelhíssima e as nações se abraçaram e cuidaram das feridas de Paris. Foi doloroso, mas sobrevivi para contar história. Enquanto isso, alguns outros esquecidos sofriam mais e mais, e eu chorava por eles e sentia em minha pele dois mil mortos sem túmulo e sem importância. Sofria como as mães que sobraram, os filhos que escapavam, os paralíticos, as crianças mudas, telepáticas. Sofria por não ouvir em nenhum lugar o nome Boko Haram, nem Baga. Não por ser um neo-tabu, sim por ser um sussurro esquálido numa terra de ninguém pra ninguém. Mas, infelizmente eu não posso falar nada. Desse absurdo inumano eu não sobrevivi para contar história.

 

*escritor e graduando em Letras pela Unesp/Assis.