Desde a década de 1980, o Brasil está construindo uma Política de Saúde Mental orientada por diretrizes e princípios que objetivam o cuidado integral para quem apresenta um sofrimento psíquico, com uma oferta de serviços e ações de base comunitária e territorial, que abrangem as diferentes dimensões da saúde: ações de promoção e prevenção no apoio à Atenção Básica; tratamento e cuidado intensivos nas diferentes modalidades de Centros de Atenção Psicossocial (adulto, dependência química, infantil); reinserção social aos pacientes internados por muitos anos nas Residências Terapêuticas (Programa de Volta para Casa); programas de Geração de Trabalho e Renda; lazer e cultura nos Centros de Convivência e muitas outras ações que os diferentes municípios que compõe a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) vem construindo e criando.
Com a troca ministerial, houve uma grande preocupação em relação aos destinos da Política de Saúde Mental, o que levou, em dezembro de 2015, um grupo de representantes de entidades da saúde mental a agendar um encontro com o Ministro da Saúde Marcelo Castro, no qual foram entregar-lhe manifestos de apoio a manutenção da Política de Saúde Mental e do Coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Dr. Roberto Tikanori Kinoshita.
Para a surpresa de todos e contrariamente ao que centenas de entidades desejavam, o ministro da Saúde, alegando que a Reforma Psiquiátrica era “ideológica e pouco cientifica”, anunciou a substituição do coordenador pelo Dr. Valencius Wurch Duarte Filho, que, além de não ter nenhuma publicação ou trabalho científico conhecido, tem como experiência de gestão mais significativa ter sido diretor da Casa de Saúde Dr. Eiras, conhecida por violências contra os pacientes. Este manicômio foi proibido de receber novas internações em 2001, após auditorias do Ministério da Saúde e da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, e foi fechado definitivamente em 2012.
Esta troca na coordenação de Saúde Mental produziu um imediato e intenso movimento de contestação repúdio de entidades de movimentos sociais, associações científicas, associações de familiares e usuários. Listas de apoios e mensagens de repúdio surgiram desde o exterior evidenciando a importância internacional da Política de Saúde Mental do Brasil, reconhecida pela Organização Mundial de Saúde e pela Organização Panamericana de Saúde, como um exemplo por sua complexidade e abrangência.
Estas manifestações transformaram-se nas últimas semanas de dezembro de 2015 e nas primeiras semanas de janeiro de 2016, em dezenas de atos públicos em muitas cidades pelo país e na ocupação das salas da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, por ativistas da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial que perdura até o presente momento. Dos muitos atos públicos, destacam-se dois: em Brasília no dia 14 de janeiro e na cidade de São Paulo no dia 18 de janeiro. Em ambos, mais de 3.000 pessoas entre trabalhadores, usuários, familiares, gestores, estudantes, docentes, simpatizantes, ocuparam as ruas com cartazes, faixas, caminhão de som, e muita energia para protestar e anunciar de modo enfático o repúdio ao nome do Dr. Valencius que representa um evidente retrocesso, pois em mais de 30 anos, nunca o cargo da Coordenação de Saúde Mental foi ocupado por um gestor que não tivesse o histórico de sua atuação consoante e afinado com os princípios e diretrizes da Reforma Psiquiátrica.
Contudo, gostaria de destacar aqui neste espaço, um aspecto positivo deste momento tenso e de impasse: o ressurgimento, na cena pública, dos atores que nas últimas décadas construíram a Política de Saúde Mental. Foi no (e pelo) trabalho coletivo e cotidiano de milhares de trabalhadores, gestores, usuários, familiares, pesquisadores, alunos, professores, que ousaram inventar novas soluções para antigos problemas que os serviços da Rede de Atenção Psicossocial foram sendo criados, desenvolvidos, reconhecidos como ações de Política Pública. Basta lembrar aqui a intensa participação destes atores nas quatro Conferências Nacionais de Saúde Mental (1987, 1992, 2001 e 2010), no Congresso de Trabalhadores na cidade de Bauru (1987), além de dezenas de outros momentos de encontros, trocas e produção coletiva.
Nos últimos anos havia um certo incômodo, quase um mal-estar, pela ausência destes movimentos sociais, desta força coletiva, no debate, na reflexão e nas proposições aos temas urgentes que a Política, por sua complexidade e abrangência, foi produzindo e colocando como desafios cotidianos a estes atores.
Que a força e a energia emanada destes atos perdure para além dos protestos. Sigamos nos encontrando, produzindo e inventando soluções. Voltemos a construir a Política Pública da Saúde Mental e Atenção Psicossocial como esta produção do bem comum.
*psicólogo e docente do curso de psicologia da Unesp de Assis. Foi trabalhador da saúde mental e atenção psicossocial e ativista histórico da Reforma Psiquiátrica, com livros e artigos publicados sobre o tema.