A dengue é um problema seríssimo de saúde pública, com o qual o país já se acostumou após 30 anos, que não rende imagens novas nem matérias na mídia. Foi com o zika vírus e sua possível relação com o aumento de casos de nascimentos com microcefalia que as atenções voltaram-se para o Aedes. O nascimento de um bebê com microcefalia é uma tragédia para as famílias afetadas e para a sociedade, mas não é tragédia maior que as quase mil mortes que a dengue causou apenas em 2015.
No último dia 3 de fevereiro, a presidente Dilma discursou em rede nacional de televisão chamando a população a se unir ao governo na luta contra o mosquito Aedes aegypti. Essa iniciativa inédita da presidência é resultado da crise sanitária decorrente da epidemia do zika vírus e o nascimento de milhares de crianças com microcefalia no país. O Aedes, a zika, a microcefalia, a dengue e a chikungunya tem repercutido nos órgãos de imprensa do país e do mundo, e a OMS declarou a zika e a microcefalia emergências de saúde pública mundiais. O chamado à população para o combate ao Aedes é uma rara e louvável iniciativa do governo Dilma no campo da saúde. As intervenções anteriores nessa área, como a criação do programa Mais Médicos, não encontram respaldo técnico e foram baseadas em critérios político partidários.
Infelizmente, quando colocamos lado a lado o discurso presidencial e as ações empreendidas até o momento pelo governo federal no combate ao Aedes e as doenças por ele transmitidas, não encontramos qualidade técnica nem vislumbramos seriedade de intenções. Por sua falta de substância, mais uma vez a ação federal em meio a essa importante crise sanitária apenas busca criar uma cortina de fumaça, para causar impressão favorável na opinião pública local e internacional. Além do discurso presidencial, o que temos até o momento são declarações de outras autoridades federais sobre a gravidade da situação e a promessa do envolvimento de até 200 mil soldados do exército brasileiro em ações educativas e na limpeza de logradouros públicos e privados nos próximos seis meses.
O envolvimento da população na eliminação dos criadouros do Aedes das casas e prédios públicos, com o fim dos locais que acumulem água parada, sempre foi a principal ação contra o Aedes. Do ponto de vista tecnológico as medidas para o combate ao mosquito são bens conhecidas desde os primeiros anos do século XX e muito pouco foi agregado ao que Osvaldo Cruz já fazia quando lutou contra o mosquito no Rio de Janeiro. Em apenas quatro anos o sanitarista erradicou o Aedes da então Capital Federal, eliminando os criadouros da cidade. A partir da experiência do Rio de Janeiro, foram quase 40 anos de combate ininterrupto ao mosquito e em 1942 a febre amarela urbana, que também é transmitida pelo Aedes, estava erradicada do país.
Uma das lições que Osvaldo Cruz nos deixou e que o governo Dilma não aprendeu é que o combate ao mosquito deve ser ininterrupto, precisa acontecer todos os dias, todos os meses do ano. Para controlar o mosquito e as doenças por ele transmitidas, não bastam ações pontuais durante as epidemias, nos meses mais quentes do ano. A prevenção das epidemias de dengue, zika e chikungunya do próximo ano acontece já em 2016, com a eliminação dos criadouros do mosquito e o envolvimento da população nessa tarefa. Por isso, a inclusão dos soldados do exército brasileiro pelo período de seis meses no combate ao Aedes terá um impacto positivo inicial, mas está fadada ao fracasso. Os mesmos problemas de hoje voltarão em 2017.
Outra lição que o combate empreendido por Osvaldo Cruz nos deixou é a necessidade dos técnicos contarem com respaldo político e financeiro para empreender suas ações. O então Presidente da República, Rodrigues Alves, e o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, estiveram incondicionalmente ao lado do sanitarista nos anos de saneamento da Capital Federal, mesmo durante os dias da Revolta da Vacina.
Já no presente, a mesma falta de credibilidade que o atual governo tem nos campos político e econômico repete-se no campo da saúde pública. No governo Dilma sempre foram nomeados políticos, medíocres tecnicamente, para o importante cargo de Ministro da Saúde: Alexandre Padilha, Arthur Chioro e agora Marcelo Castro. A falta de comprometimento em resolver o problema do Aedes e das doenças por ele transmitidas também transparece quando faltam recursos financeiros mínimos para empreender essas tarefas: em 2015, ano em que o país viveu sua maior epidemia de dengue, o governo federal cortou em 60% os recursos destinados a combater o Aedes aegypti!
A dissociação entre discurso e prática do governo federal também aparece quando vemos o projeto do Instituto Butantan, de desenvolver uma vacina contra o zika vírus em três anos, sendo prejudicado pelo atraso nos repasses inicial de 30 milhões prometidos pelo governo federal em janeiro de 2016. O padrão se repete: palavras vazias, desacompanhadas de ações concretas e objetivas para resolver o problema.
A prática de discursos desacompanhados de atitudes sérias e consistentes para resolver o problema é manifesta na ausência de iniciativas de educação em saúde que conquistem os corações e mentes da população para a importância de eliminar os criadouros do Aedes. Campanhas educativas de qualidade e realizadas de maneira permanente são um instrumento poderoso para a saúde pública: basta relembrar o sucesso do personagem “Zé Gotinha”, criado na década de 1980 para as campanhas de vacinação contra poliomielite, que culminaram com a erradicação dessa grave doença do país em 1989.
Por tudo isso, é difícil acreditar na seriedade das intenções da presidente, quando ela pede a união nacional em torno do combate ao Aedes. Pelo desencontro entre o verbo e ação, tudo leva a crer que se trata novamente de uma iniciativa voltada a melhorar sua imagem junto à opinião pública.
*médico, doutor em Saúde Coletiva e professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp em Araraquara.