Dengue é, inegavelmente, um grande problema de saúde pública. Em tempos de iminência de vacinas contra a doença, as atenções parecem ter sido voltadas ao casos de microcefalia associada à circulação do vírus zika ou aos casos de febre do chikungunya. Dengue acabou ficando em segundo plano e dados oficiais de janeiro mostram que 2016 vai ser um ano tão crítico para a transmissão da doença como no ano anterior. Foram 1,6 milhão de casos em 2015, um recorde na série histórica da doença. Dengue continua tão ou mais importante que outras doenças transmissíveis pelo Aedes aegypti. Para os que trabalham diretamente com a doença, o pesadelo começa no final de dezembro e continua até junho, quando dá uma ‘folga’. A transmissão no país ocorre durante todo o ano, mas há um maior número de notificações nos primeiros meses.
Os casos da doença vêm sendo sistematicamente documentados no Brasil há 35 anos. É um marco histórico e cabe uma discussão sob dois aspectos: o da gestão das atividades de controle e as ferramentas diagnósticas para detectar a infecção viral, críticas para a identificação e gerenciamento dos casos. Sabe-se que a transmissão é multifatorial e cada ponto precisa ser profundamente estudado. A interação entre vírus, mosquito, população e área de transmissão apresenta variabilidade e a plasticidade das relações pode impactar na manifestação dos sintomas. No entanto, ainda recai sobre a população a responsabilidade pelo aumento no número de casos. Uma análise mais crítica, e menos simplista, faz-se necessária para se entender o que ocorre de fato.
Parece ficar cada vez mais evidente que a tendência ao aumento das notificações pode estar relacionado ao enfrentamento do problema nas esferas locais, de responsabilidade das gestões municipais. A Vigilância Epidemiológica apresenta uma série de fragilidades e a principal está relacionada a cargos utilizados como moeda de troca entre partidos políticos. Vagas estratégicas, como as relacionadas à saúde, não deveriam ser ocupadas em confiança, mas por profissionais com conhecimento técnico, comprometidos e que estejam profundamente sensibilizados com os problemas de saúde do município. A dança das cadeiras de cargos de confiança gera insegurança, descomprometimento e, principalmente, a falta de constância de ações contra dengue, que passam a ser cartoriais, estéreis e realizadas apenas pela obrigatoriedade, não pela eficácia. Não há estratégias desenhadas para atender demandas e especificidades locais. Ações com esse nível de profundidade são tão efetivas como usar uma peneira como guarda-sol. O objetivo primordial jamais é alcançado.
Outro fator preponderante que precisa ser discutido é a forma como o diagnóstico ocorre em nosso país. Apesar do advento de metodologias de ponta, a definição de casos ainda é feita através do diagnóstico clínico e confirmado por sorologia, que são pontuais e financeiramente acessíveis. O primeiro é baseado exclusivamente em sintomas e dados hematológicos; o segundo na resposta imune à infecção. Ambos estão condicionados à participação do paciente, que deverá procurar uma unidade de saúde e esperar atendimento. O resultado da sorologia chega, normalmente, quando o indivíduo já não está mais doente, o que gera propaganda negativa e a não adesão ao exame. Ambos sonegam informações que são importantes para o entendimento da doença em termos individuais e coletivos. Vale ressaltar que há uma diversidade de vírus transmitidos por mosquitos que tem sintomatologia inicial semelhante. Assim, o emprego rotineiro de metodologias para a detecção direta de vírus pode auxiliar no manejo diferencial do paciente ainda nos primeiros dias da infecção, além de fornecer subsídios para estudos em diversas frentes de ação.
Por fim, há outros fatores associados à transmissão de dengue que ainda precisam ser estudados e avaliados. Entretanto, nada parece tão urgente quanto o fortalecimento de medidas de controle mais conscientes e direcionadas às realidades locais e a ampliação das ferramentas diagnósticas, imprescindível à identificação mais precisa do agente etiológico responsável pela doença febril que motiva a busca pelo sistema de saúde. Em tempos de guerra contra os vírus zika, chikungunya e dengue, não se deve trocar gato por lebre.
*professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp de Araraquara.