“Íntimo e cúmplice de todos os poderosos da vida, vinha cinicamente confessar de público as façanhas inconfessáveis. Assim, confirmava a suspeita popular. Era verdade. Ele participara da negociata, embolsara tanto, os descontentes que se queixassem ao bispo mais próximo.” O perfil parece atual, mas foi traçado há bastante tempo por Antônio de Alcântara Machado e se refere a Juó Bananére, que aterrorizava os políticos no início do século passado. Todos temiam aparecer na companhia do boquirroto personagem.
Acontece que Juó Bananére era um personagem de ficção. Fora criado por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1890-1933) para satirizar os diversos aspectos da sociedade da época. O efeito de seus escritos era sobretudo derrisório, e por isso crítico e revelador. Embora o procedimento evoque executivos e políticos que estão fazendo “delação premiada” nas diversas investigações em curso no País, seu efeito, no caso presente, é ou será trágico.
Se a intenção dos delatores não é artística ou humorística, cabe perguntar o que os leva a denunciar ações que antes lhes pareciam adequadas? Arrependimento, altruísmo, vingança, medo de sofrer na prisão? Há pelo menos duas categorias de investigados nesses processos penais: os que não aceitam absolutamente abrir o jogo com os promotores e a grande maioria deles que, ao primeiro aceno de diminuição da pena, abrem a boca. Sem dúvida, o mais emblemático dos que estão delatando é o senador Delcídio do Amaral, que parecia pertencer à primeira categoria e acabou figurando na segunda.
Como a situação política do País não é para rir, torna-se imprescindível refletir sobre essas ocorrências. Admitindo-se que o primeiro grupo, de que José Dirceu talvez seja o representante mais destacado, tenha razões políticas e ideológicas tanto para chegar aonde chegou como para se comportar com firmeza ante as oferendas da delação, deve-se atentar para o comportamento dos integrantes do segundo grupo que, embora tenham assumido o “projeto”, não conseguiram suportar as pressões e entregaram os parceiros.
Falar aqui de traição ou algo do gênero é insuficiente. É preciso avaliar o projeto político que comportou tais parcerias. Além de revelar a ganância e o oportunismo do setor empresarial e mesmo de indivíduos inescrupulosos, que alimentam a famigerada tradição da corrupção, o cinismo da confissão escancara a falácia de uma estratégia de poder que, independentemente de eventuais objetivos justificáveis, revela-se um desastre social e principalmente político, que talvez adie sine die a perspectiva de que a esquerda contribua para a melhoria das condições de vida dos brasileiros.
*professor da Unesp, Campus de Assis.