Para quem nunca cultivou qualquer simpatia pelo ex-presidente, nem mesmo pela sua versão “paz e amor”, não causa qualquer espanto o seu baixíssimo nível intelectual e moral, expresso nas nada edificantes gravações liberadas pela Polícia Federal. Tudo isso sempre pareceu evidente aos que, por razões diversas, mas aparentadas, não se deixaram levar pelo canto de sereia do líder, pela sua suposta simplicidade boa e verdadeira. A esses, talvez, tenha realmente causado espanto a naturalidade e a subserviência, melhor, a passividade bovina com que os seus interlocutores escutam os seus impropérios, deixando claro que acreditam piamente estarem diante de um deus que dita leis inquestionáveis, que dita dogmas.
Pescando uns poucos casos naquele oceano de gravações, causa espanto, por exemplo, que Nelson Barbosa, um ministro de estado, responsável pela área mais importante e sensível do governo, a economia, escute calado e obediente “pitos”, palavrões, ordens, de alguém que não é do governo, não tem diploma de economista e entende de economia tanto quanto a maioria dos seres humanos entende de “ondas gravitacionais”. A impressão que se tem, a péssima impressão, a propósito, é a de que se trata da conversa de um patrão autoritário e antipático com um subordinado a quem julga –– pela impaciência da voz –– dotado de pouco poder de entendimento. E o ministro, que representa um governo que nos representa, veio a público dar explicações, esbravejar ou ao menos se desculpar com a população? Claro que não. Do mundo de onde ele provém, a vênia ao líder é tida como natural, já se tornou um hábito e garante um lugar na máquina pública.
Pode soar preciosismo, excesso de moralidade burguesa, talvez, mas também não parece normal que o ex-presidente teça comentários tão desrespeitosos e suspeitos sobre o atual ministro da justiça, e o mesmo se contente em atacar e ameaçar os que produziram as escutas reveladoras dos impropérios. País bizarro este, no qual insinuações do porte das que ouvimos nas gravações não suscitam uma única nota de indignação, um único desmentido por parte dos envolvidos. Infelizmente, naturalizou-se, no “paraíso artificial” em que vive o governo, uma ideia que deveria corar aos que se dizem democratas: sou mesmo partidário e sectário, todos sabem disso e não estou nem aí para os que pagam o meu salário, o povo brasileiro.
Parece estranho, igualmente, que os sempre ativos grupos envolvidos na defesa dos direitos da mulher não tenham se manifestado contra a coleção de ofensas que o ex-presidente fez justamente a elas, às mulheres, as quais, a se levar a sério as suas falas –– e devemos levar, ao que tudo indica –– ocupam um péssimo lugar na sua escala da evolução humana. A única voz de indignação que se ouviu das bandas da esquerda veio da boca da senadora Marta Suplicy, direta e grosseiramente ofendida. É digno de nota, no entanto, que a senadora, outrora aliada fiel do ex-presidente, para quem sonhava um terceiro mandato, tenha notado somente agora que seu ex-companheiro de partido possua um caráter tão acentuadamente misógino.
Curiosamente, no entanto, o espanto que temos ao ouvir de viva voz a desenvoltura com que o ex-presidente manda e os outros obedecem não ocorre quando escutamos os poucos diálogos que ele mantém com a atual presidente. Por razões as mais variadas, que vão do pouco talento político e administrativo da mandatária à sua proverbial indecisão, suspeitávamos que ela mandava pouco no seu governo e mantinha com o ex-mandatário uma relação bastante grata e servil, imprópria para quem dirige um país –– “pouco republicana”, como está em moda dizer.
Enfim, e isso é bem triste de se constatar, o que menos comoção causa em todo esse imenso lufa-lufa das gravações é o fato de que a presidente do Brasil escute grosserias e ordens do ex-presidente e ainda o trate, por vezes, de “senhor”.
*professor titular de História do Brasil da Unesp de Franca.