‘
A posse de José Serra como ministro das Relações Exteriores marca uma nova época na política externa brasileira, sensivelmente diferente da anterior. Ainda que Dilma Rousseff tenha dado pouca atenção ao Itamaraty, a era do Partido dos Trabalhadores à frente da formulação e execução da política externa é bastante emblemática, enfatizada pela articulação político-econômica entre países em desenvolvimento, conhecida também como Cooperação Sul-Sul.
Apesar de ser muito cedo para fazer qualquer prognóstico, José Serra à frente do Ministério das Relações Exteriores é sintomático.
Qualquer análise sobre as relações internacionais do Brasil para os próximos períodos deve levar em conta, ao menos, duas frentes: de um lado, as relações do Brasil com a América Latina e, de outro, as relações extrarregionais.
No caso das relações regionais, o Mercosul está hoje no centro das atenções, seja pela chegada de Macri à presidência da Argentina (com propostas ventiladas que vão desde a suspensão da Venezuela até a aproximação do bloco com a Parceria Transpacífica-TPP), seja pelo burburinho causado pela indicação de José Serra ao Ministério das Relações Exteriores, assumidamente um crítico à configuração atual do Mercosul.
No Brasil, as tensões em relação ao futuro do Mercosul dizem respeito ao fato de José Serra já ter dado diversas declarações negativas sobre o bloco regional. O atual ministro das Relações Exteriores tem o entendimento de que o Brasil deveria dar mais ênfase aos acordos bilaterais, em detrimento da integração regional. Para ele, o Brasil perde o poder de barganha nas negociações em bloco, apesar de serem verificados avanço nas negociações comerciais entre Mercosul e União Europeia. Basicamente, a visão negativa da integração regional diz respeito à ideia de que o Mercosul e outros acordos são barreiras que impedem o Brasil de se inserir nas ”cadeias globais de valor”, além de impedi-lo de participar de negociações mais importantes e promissores.
Tais ideias são fortes no PSDB, o qual, desde o governo Cardoso (1995/2002), projeta a política externa brasileira associada aos grandes centros de poder. Implica um reforço da noção de dependência econômica, a qual caracteriza a relação histórica entre o centro e a periferia.
É preciso ressaltar, no entanto, que a noção de ”bilateralismo” como política de Estado se esgotou ao fim da década de 1990. A ascensão ao poder nos anos 2000 de governos de centro-esquerda no Brasil e na América Latina foi justamente um movimento contrário ao neoliberalismo da década anterior, com repercussões expressivas para a política externa. Considerando que já foi experimentada e derrotada a condução da política externa brasileira com base no foco com os Estados Unidos, tanto do ponto de vista econômico quanto moral, é preciso questionar a sua validade em outro contexto histórico, cuja fragmentação de poder na ordem global se mostra uma importante variável.
A segunda frente de análise diz respeito às relações internacionais do Brasil fora do seu entorno geográfico. Um exemplo a se pensar é o arranjo político-diplomático intitulado BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Em suma, o BRICS surge em um contexto de rearranjo da ordem global: ápice da crise financeira de 2008 e queda de poder relativo dos Estados Unidos. Em contrapartida, países em desenvolvimento, com economias em plena expansão, a reboque do boom das commodities, viviam o auge da ascensão política nas relações internacionais: criação do G-20 e esvaziamento do G-7. Como reivindicação, os países BRICS buscavam maior autonomia em relação aos países em desenvolvimento pari passu às reformas das instituições internacionais. Ainda que os resultados tenham sido incipientes, a semente foi plantada.
Com o fim da era do Partido dos Trabalhadores na condução da política externa brasileira, o retorno do foco nas relações bilaterais com países do eixo Norte pode ter duas consequências a médio prazo. Em primeiro lugar, o recrudescimento do multilateralismo, bandeira forte do Itamaraty. Em segundo lugar, a aproximação mais ou menos intensificada com os Estados Unidos deve enfraquecer as políticas de cooperação Sul-Sul.
Por fim, se olharmos a política externa como política pública, é difícil imaginar que Temer terá apoio popular para dar grandes guinadas, uma vez que ascende ao poder num quadro de ruptura institucional. Qualquer mudança estrutural no Mercosul, por exemplo, será seguida por forte resistência das forças sociais internas. Do ponto de vista do BRICS, ao contrário, o arranjo ainda não caminha sozinho, depende fundamentalmente de vontade política. A vontade política acontece não só com ações claras e racionais, os símbolos já foram lançados.
*pesquisador do Programa de Pós-graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) em Relações Internacionais.
‘