Há pelo menos uma década, o ensino público do Estado de São Paulo, o universitário, sobretudo, vem periodicamente se tornando refém de um pequeno, mas organizado, secretário e barulhento grupo de alunos vinculados a partidos políticos de esquerda, os mesmos partidos que controlam os denominados movimentos sociais. Durante o reinado nacional petista, por tudo e por nada –– as pautas podiam variar diariamente ou mesmo serem preventivas ––, esses movimentos estudantis pararam as universidades paulistas com o único propósito de criar constrangimentos para o “governador de direita” Geraldo Alckmin. As paralisações eram tão partidarizadas, tão orquestradas que se podia ter um calendário prévio delas acompanhando os muitos informativos saídos dos encontros daquelas instituições de esquerda latino-americanas que proliferaram nos últimos tempos sob o patrocínio do governo federal.
O mais espantoso, para quem acredita na espontaneidade dos movimentos juvenis –– e há, ainda, quem creia nisso, sobretudo nas redações dos jornais ––, é o índice de acerto de tais calendários: paralisação programada é paralisação realizada. E, naturalmente, meses de dor de cabeça para a maioria dos alunos, atraso nas pesquisas dos campi e, o que realmente importa para os ativistas –– estudantes indiferentes aos problemas da universidade ––, um enorme desgaste para o inimigo político da vez.
Certamente que tamanha eficiência, tamanha capacidade de operacionalização, não se deve nem à proteção divina –– as causas defendidas pelos estudantes não são assim tão justas––, nem à capacidade de organização dos “jovens idealistas”, que geralmente é tão boa quanto a governação dos partidos a que estão vinculados, e nem, tampouco, ao poder que os ativistas têm em convencer racionalmente os seus colegas, os quais, a bem da verdade, fogem assustados do “bullying das assembleias”, que transforma os não simpatizantes da causa (a imensa maioria) em monstros coxinhas, em burgueses interessados somente em estudar. Essas andorinhas não fariam, pois, verão, se não contassem com um ambiente extremamente favorável nas universidades públicas, um ambiente ideal para a manutenção e a reprodução da espécie.
Os tolerantes estatutos dessas universidades, por exemplo. Poucos pagadores de impostos sabem, mas um aluno de uma universidade pública paulista pode cursar durante 7, 8 anos uma graduação que deveria ser finalizada em 4; pode, também, cursar uns poucos anos de uma graduação e entrar em outro curso, permanecendo indefinidamente no sistema universitário. Tamanha benevolência com o dinheiro do contribuinte criou a figura do estudante profissional, indivíduo que, geralmente a serviço de um partido, frequenta o ambiente universitário por anos com o único propósito de “atuar politicamente”, isto é, de fazer proselitismo e criar demandas que possam gerar paralisações e greves. Tais indivíduos, na maior parte das vezes, depara com diretores de campi extremamente condescendentes, que têm um medo pavoroso de serem taxados de “autoritários”, “burgueses”, “cupinchas do governador” e de outras tolices saídas do universo esquerdista. Esses gestores envergonhados de sua autoridade, indecisos se administram uma universidade ou uma comunidade alternativa de Arembepe, são presa fácil para a armadilha do “diálogo”, palavra que na linguagem do movimento estudantil significa que o outro é obrigado a ouvir absurdos até vir a concordar com eles.
A concepção de universidade pública que se alimentou ao longo desse período populista que passamos também colaborou muito para a reprodução dessa espécie. O horror ao mercado, à sociedade capitalista e burguesa, há pelo menos quatro décadas é pacientemente cultivado nos departamentos de humanas das universidades públicas. Os discentes, que futuramente terão que ingressar num mercado capitalista, são formados numa bolha coletivista que fomenta o ódio ao trabalho regular, ao estado constituído e à ordem pública –– e denominam tal anacronismo, com cheiro de Theodore Roszak, de produção de “espíritos críticos”. E isso não é tudo. Fomentou-se, ao lado do repúdio ao capitalismo, a visão de que a universidade é uma instituição de assistência social, destinada não a produzir conhecimento ou a formar bons profissionais para o país, mas a corrigir, por meio de bolsas e programas sociais destituídos de fundamentos acadêmicos, as muitas desigualdades do Brasil.
Foi esse meio ambiente simpático à vitimização, sem cobranças e avesso à valorização do mérito –– estranhamente, quase um xingamento no meio universitário brasileiro –– que criou as condições ideais para a multiplicação das paralisações dos últimos anos, paralisações que prometem voltar em força depois do afastamento da presidente, afinal, o movimento estudantil, que costuma ser bastante obediente, já recebeu a ordem do seu coronel: “não vai ter golpe, vai ter luta”.
O grande consolo das universidades paulistas, a esta altura, é que, com o despejo do petismo lá de Brasília, o tormento se estenderá por todo o sistema universitário federal, que subitamente, sob a administração Temer, se transformará num espaço burguês, excludente e opressor, com milhões de motivos para paralisações, invasões e depredações estudantis, tal como vem ocorrendo em São Paulo.
Eis a receita imbatível para sucatear e acabar de vez com o já combalido sistema universitário público brasileiro, que, caso queira realmente sobreviver e prosperar, precisa urgentemente sair dos anos 60, aceitar que a academia está longe de ser o lugar da “resistência ao capitalismo” –– ideia ridícula e anacrônica –– e mostrar à sociedade que a universidade pública não é obsoleta e deslocada, que não vive num paraíso artificial, numa matrix produzida por técnicos cubanos saídos de um “Mais Informática”.
*professor titular de História do Brasil da Unesp de Franca.