A cidadania não é condição natural do homem, mas o estado político conferido pela vida em sociedade. Isto é, cidadão não nasce cidadão, mas se reconhece como tal enquanto integrado à vida de determinada comunidade política e na medida em que exercita seus direitos e contribui para o bem comum. Assim, o status de cidadão manifesta a principal identidade dos indivíduos em vista do acesso aos direitos. Portanto, a cidadania é condição jurídica, política e social necessária para a república e para a democracia bem como para o reconhecimento da dignidade humana.
Com isto, entende-se o motivo pelo qual o legislador Constituinte de 1988 colocou a cidadania como o segundo fundamento da estrutura republicana brasileira (CF, Artigo 1o, II). A centralidade do tema exigiu definir a preparação para o exercício da cidadania entre os três núcleos estruturantes da educação nacional, conjuntamente com o desenvolvimento da pessoa e a formação para o trabalho (CF, artigo 205).
Em 1651, Thomas Hobbes ilustrou a capa de seu livro O Leviatã com a enigmática figura do rei portando a espada na mão esquerda, o cetro na direita e a coroa na cabeça. O que poucos observam na imagem é que o tronco e os membros são compostos pela multidão de pessoas. O livro discute a estrutura da sociedade e a legitimidade do poder. Boa parte da explicação de seu conteúdo pode ser identificada na imagem.
O tronco e os membros do rei formam-se pelo conjunto dos cidadãos vivendo na comunidade política. O governo é a cabeça; o tronco e os membros formam a sociedade. O tronco e os membros dão sustento à cabeça. Boa pista para entender o discurso de Abraham Lincoln no Cemitério Militar de Gettysburg, em 1863, após a Batalha de Gettysburg, crucial para a Guerra da Secessão: “(…) que todos nós aqui presentes solenemente admitamos que esses homens não morreram em vão, que esta Nação, com a graça de Deus, renasça na liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desapareça da face da Terra”.
A Constituição de 1988 recepcionou o monarca da capa do Leviatã e a essência do Discurso de Gettysburg ao incluir dentro dos fundamentos da República Brasileira a legitimidade democrática pelo exercício da cidadania. Diz o Parágrafo único, do artigo 1o da Constituição que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Conclui-se que pelo exercício amplo da cidadania o tronco e os membros escolhem e legitimam sua cabeça. Isto é, o conjunto dos cidadãos, denominado de povo pela Carta Magna, carrega sobre seus ombros o peso da qualidade de suas escolhas eleitorais. Quando elegemos os representantes legislativos e executivos transferimos para eles nossa liberdade de escolher e o poder para administrar nossa vontade em relação às coisas públicas.
O mote popular de que o governo é exercido em nome do povo está errado. O poder é exercido pela comunidade de cidadãos através de seus representantes. Novamente a imagem do Leviatã contribui para o entendimento: tronco, membros e cabeça compõem a unidade denominada de corpo, cujo elemento qualitativo dependerá do sangue irrigado pelo coração. Na estrutura política o sangue pulsa movido pelas válvulas da cidadania, pois todas as partes do corpo se alimentam da mesma essência vital. Muitas vezes, quando a cabeça dói o problema pode estar em alguma outra parte do corpo.
Então, se depender do modo como exerço minha cidadania, que tipo de sangue está sendo bombeado para alimentar o exercício do poder político? Se depender de minhas atitudes e interesses o que esperar dos governos?
*Professor da Faculdade Reges de Dracena; mestre em Direito (Teoria do Direito e do Estado) pela UNIVEM (Marília); doutorando em Direito (Sistema Constitucional de Garantia de Direitos) pela ITE-BAURU