Dia 28 de maio, o Globo Repórter, famoso e antigo programa da Rede Globo, apresentou matéria sobre a qualidade de vida na Itália, apesar da crise econômica que por lá dura quase uma década. Na verdade, não muito discretamente, o que se sugeriu na matéria jornalística foi a ideia de que o Brasil atual poderia copiar ou imitar as “soluções” italianas para conviver pacificamente com a crise econômica (que no Brasil promete ser longa, como também parece sugerir o programa).
As qualidades do quotidiano da Itália atual, na visão do programa, dizem respeito, sobretudo ao “savoir vivre” dos italianos, que, em meio à crise que vitimou milhares de empregos, sobretudo na indústria, souberam resistir e procuraram no passado milenar, nas tradições e no uso sensato da (belíssima) paisagem natural os meios para dar a volta por cima ou, ao menos, contornar o alto desemprego e a falta de perspectivas.
Méritos certamente o programa teve, principalmente ao mostrar que os jovens, até os muito jovens, com menos de 25 anos, voltaram-se para a agricultura, recuperando antigas práticas que respeitavam o meio ambiente e que produziam alimentos saudáveis. Nas prateleiras dos supermercados italianos, nas feiras e exposições, é inacreditável a quantidade de produtos orgânicos e veganos de qualidade, além dos tradicionais que se apresentam renovados e aperfeiçoados, e quase sempre os produtores são cooperativas formadas por jovens. No entanto, o segredo da capacidade italiana de ressurgir das cinzas, da destruição, está na sua própria história, inclusive na sua história mais recente, após a Segunda Guerra Mundial.
Em 2 de junho de 1946, há exatos 70 anos, o povo italiano escolheu a República, em detrimento da Monarquia existente, bastante comprometida com o fascismo e, de certa forma, também responsável pela desastrada aventura italiana na Segunda Guerra, na qual Mussolini, para contentar o poderoso aliado Hitler, jogou a nação numa guerra para a qual não estava minimamente preparada. Desde então, o país passou por profundas transformações que provocaram um enorme progresso material, mas também, como o cinema e a literatura buscaram representar, um choque na estrutura arcaica e agrária, principalmente no Sul, a região mais atrasada e mais sujeita à criminalidade organizada. É claro que estou me referindo ao famoso “miracolo econômico” (milagre econômico) que alçou o país à condição de industrializado e com boa qualidade de vida, apesar da ineficiente estrutura governamental e dos contrastes internos entre o Norte, mais sintonizado com o resto da Europa, e o Sul, que ainda hoje enfrenta problemas seculares como o alto desemprego e a corrupção na vida pública. Depois, vieram os anos 60 e, sobretudo os anos 70, anos de crise econômica e de terrorismo (de extrema esquerda e de extrema direita), provocando estragos que ainda hoje repercutem na esfera política. A recuperação do país sempre foi imediata e decisiva, embora muitos problemas de ineficiência dos serviços públicos, por exemplo, ainda persistam. Talvez isso confirme o que pensava Montale, grande poeta italiano, quando afirmava que, por onde passaram grandes civilizações, a grandeza nunca se apaga completamente.
Que lições esse país milenar, na atualidade, poderia dar ao Brasil? É preciso tomar cuidado ao fazer aproximações e comparações apressadas. Como bem lembra o pensador Guicciardini, no número 110 das Reflexões (é a terceira vez que cito essa obra nos últimos tempos!), “são tolos os que a cada palavra alegam os romanos, pois seria preciso ter uma cidade como era a deles, e depois governar-se segundo aquele exemplo, o qual, para quem tem qualidades desproporcionais, é tão desproporcional quanto querer que um asno corra como um cavalo”. Guicciardini se referia a Maquiavel, que acreditava ser possível utilizar como referência as sociedades grega e romana para a prática política em Florença, durante o século XVI. Será que nós também poderíamos adotar como modelo para sair da crise, como tenta sugerir o Globo Repórter, a Itália dos dias de hoje? No entanto, as qualidades italianas não são iguais às qualidades brasileiras, e a “cidade” italiana não é semelhante a do Brasil.
Concluindo, apesar das enormes diferenças, há dois aspectos da sociedade italiana atual que o Brasil poderia tomar como modelo, não apenas para sair da crise, mas para encontrar definitivamente o caminho do desenvolvimento: a boa escola pública e a eficiente estrutura sanitária italiana. No entanto, se a escola italiana, na imensa maioria dos casos, se manteve pública, assim como a estrutura sanitária, é por ter adotado um sistema de cobrança de taxas (não onerosas) que leva em consideração a renda familiar de cada cidadão. O assunto já foi discutido tantas vezes em nosso país, encontrando sempre resistência de certos setores que alegam se tratar de um processo de elitização do ensino e da saúde. Trata-se, a meu ver, de um grande equívoco, pois o que existe atualmente pode ser gratuito, tanto na escola como na saúde, mas é extremamente ineficiente e estimula a prática de pagamentos paralelos e ilegais, muitas vezes denunciados pela mídia. Mas isso é tema, talvez, para um futuro artigo. Termino parabenizando a “velha bota” pelos 70 anos de República (e que durem milhares de anos!).
*Professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.