Estava chegando de mudança num beco de reconhecida importância entre os devotos da criminalidade. Preparava-me para conduzir meus pertences para o cubículo escondido no fundo da casa, quando uma menina de cinco anos, seguida por três irmãos menores, veio ao meu encontro, estampando sorrisos maiores do que seu rosto como se fôssemos antigos conhecidos e abraçou-me como se ali houvesse chegado o seu pai morto no dia de Ação de Graças.

Pelo instinto paterno acolhi a menina num abraço e, através dela, refiz meu ponto de vista sobre toda a freguesia e abracei o beco da esperança esquecido neste recanto. Fiquei acanhado ao responder pela primeira vez ao “bença, moço!”. Depois, fez-se fila para pedir a benção com o desejo de ouvir um “Deus te faça feliz!”. Pediam a benção com a mão estendida à maneira dos mendigos e dos vencidos antes de começar a batalha.
O pai da menina morrera prematuramente há exatamente um ano, esfaqueado na entrada do beco ao chegar do trabalho. Morreu de hemorragia no batente da casa, no limiar da noite, sob o olhar assustado da filha mais velha, ouvindo o grito de horror da esposa gestante que, em estado de choque, desmaiou e só retornou à consciência após parir o filho de sete meses e alguns gramas, único homem da família.
Sem sustento e com quatro filhos pequenos, sua mãe se jogou no trabalho recebendo o salário mínimo, bem adequado ao preceito constitucional do sustento da família. Para completar os alimentos dos filhos, passou a negociar seu único bem: o corpo. A prostituição não rendia muito, mas já ajudava.
E a menina tanto viu que fez igual! Ela não sabia que há gente que só tem sua existência reconhecida quando incorre em erro. Como os escravos, só o crime os transformam em sujeito de direito.
Ninguém mais a aceita. Na semana passada, até o pai revoltado saiu da foto de casamento mantida na cabeceira da cama de sua mãe, entrou em seu sonho e a expulsou de casa a peso de pancadas.
Perdida, caminha sem destino entre a casa de sua mãe e o altar enfeitado de Nossa Senhora das Dores, a madroeira destas vizinhanças, na matriz do Bom Conselho.
Os olhos amedrontados continuam iguais ao par-de-olhos que me recebeu sorrindo. O broto cresceu! E os espinhos não atrapalham a beleza da rosa. Com sua alma analfabeta aprendeu cedo as leis da sobrevivência e suas impiedades. Com seu espírito ingênuo descobriu, a peso de experiência, o amargor do veneno da falta de solidariedade num mundo regido pela lei da sobrevivência e governado pela ignorância de letrados.
Se a esperança é a última que morre, também é a primeira que ressuscita. A vida continua mesmo quando uma esperança morre! Esperança, a gente faz outra, e outra, e outra; é igual filho; se gesta dentro da gente, não na barriga, mas no coração.
Ainda resta naquela alma infantil a mistura de desespero e esperança. Com ela, convenci-me que os tempos de turbulência ajudam a ressuscitar as esperanças que só se concretizam com a educação de qualidade oferecida a todos e o olhar sem preconceitos sobre as realidades sofridas. Nossa sociedade e nosso país podem ser muito mais e muito melhores… Depende de cada um de nós!

*Professor da Faculdade Reges de Dracena; mestre em Direito (Teoria do Direito e do Estado) pela UNIVEM (Marília); doutorando em Direito (Sistema Constitucional de Garantia de Direitos) pela ITE-BAURU.