Engenheiros, políticos e colonos discutiam um daqueles projetos planejados para a inutilidade. A intenção era angariar alguns votos para o doutor fulano através de empregos imaginários e da distribuição de gás, de chinelos e de cestas básicas. Na negociação da própria liberdade, comprador e comprado sentiam a verdadeira alegria de se levar vantagem.
Surgindo discordância entre o ponto de vista dos colonos e o dos engenheiros e políticos, o jovem técnico toma a palavra:
– “Creio não estarmos sendo bem compreendidos. Propomos vantagens indispensáveis à comunidade e sua população” e, voltando-se para o velho questionador, acrescentou: “o cidadão me desculpe, mas…”.
Ao ouvir isto, o caboclo meio claro, desdentado, fala de analfabeto, face marcada pela dureza da lida, com os sinais de velhice superando seu tempo de vida, e braços de trabalhador, levanta-se como se impulsionado por mola ao som de “o cidadão”, toma a palavra brusca e agressivamente sem pedir licença nem pegar microfone e sai aos berros com o jovem técnico (aqui já traduzido para os alfabetizados).
– Cidadão!? vão me desculpando os senhores. Um rapazola qualquer, só porque tem diploma de faculdade, insultar o velho respeitado e respeitador chamando-o de cidadão na frente de seus amigos… isto não se faz, é muita audácia! Meu compadre eu conheço e posso garantir que ele não é cidadão coisíssima nenhuma. Muito pelo contrário, é homem trabalhador e honesto. Nunca roubou! Não desrespeita ninguém! Trabalha duro para viver! Cumpre em dias seus deveres com o país! Vota dirigido pela consciência; nunca se vende! Vive de acordo com as leis e até ajuda outros a trilharem no encalço da justiça. Não sonega imposto, nem usufrui de dinheiro desonesto! Se vocês são cidadãos, eu não tenho nada com isto. Mas meu compadre ninguém vai insultar publicamente de cidadão.”
A revolta do caboclo faz-me pensar no conceito de cidadania. O status civitatis (o estado daquele que é da cidade) traduz o grego Politikon. Ambos referem-se ao homem livre da Politeia denominada de República (coisa pública) pelos Romanos, cuja possível tradução para o português é comunidade. Tanto a origem grega quanto a latina indicam a essência gregária e solidária do conceito de cidadania.
A Constituição de 1988 reconheceu a cidadania como um dos cinco fundamentos do Estado Democrático de Direito para depois normatizar que o poder emana do povo e em seu nome é exercido. Neste sentido, povo configura o coletivo de cidadão e demonstra a necessidade da preocupação mútua de todos.
Quando indivíduos se sentem mais esperto que outros e tiram vantagens pessoais das situações, a cidadania cede lugar à barbárie. Grandes males coletivos iniciam quando a ausência de solidariedade se sobrepõe às exigências da cidadania. Quando aproveitar-se do bem comum para vantagem própria vira regra, a esperteza sacrifica a comunidade.
Custa caro o esquecimento do dito popular dos mineiros: a esperteza quando muita vira bicho e come e dono, neste caso, devora a nação inteira. O ano eleitoral oferece ótima oportunidade para avaliar qualitativamente nossa cidadania. A postura cidadã edifica a comunidade e constrói a república e o estado democrático de direito; a esperteza preambula o inferno. Neste queimam-se indistintamente culpados e inocentes.
*Professor da Faculdade Reges de Dracena; Mestre em Direito (Teoria do Direito e do Estado) pela UNIVEM (Marília); doutorando em Direito (Sistema Constitucional de Garantia de Direitos) pela ITE-BAURU.