A história da energia nuclear confunde-se, em larga medida, com a história do século XX, tanto sob a ótica do seu desenvolvimento científico e tecnológico, quanto no que se refere à formação do sistema internacional contemporâneo. No primeiro caso, os estudos sobre a capacidade geradora de energia do urânio enriquecido levou a humanidade ao ápice de seu poderio destrutivo com a criação das bombas atômicas e de hidrogênio. No segundo caso, e em larga medida como um desdobramento do primeiro, a configuração do sistema internacional acompanhou os esforços bilaterias e multilaterias de criação do TNP – que inaugura o regime de não proliferação e desarmamento nuclear – e da AIEA – que promove a utilização pacífica da energia nuclear. Apesar de sua penetração no mundo tal e qual o conhecemos, a energia nuclear adentra o século XXI como o “patinho feio” das fontes geradoras de energia; um apelido que apesar de inspirado em acontecimentos históricos recentes, também reflete um desconhecimento geral das sociedades sobre o tema.
Quarenta e um anos após os EUA lançarem as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, o mundo assistia estupefato ao potencial destruidor da energia nuclear mesmo quando utilizada para fins pacíficos. Em 1986, o acidente nuclear de Chernobil levou à liberação de uma grande quantidade de material radioativo na atmosfera. Os resultados das explosões em Chernobil chegaram a Europa, evidenciando o alcance transnacional que um acidente nuclear poderia ter. Vinte e cinco anos após Chernobil, novamente a energia nuclear tomou conta da mídia por seus impactos negativos quando do acidente em Fukushima que levou ao vazamento de água radioativa no oceano. Os dois acidentes são reconhecidamente os maiores desastres nucleares da história quer por suas dimensões, impactos ambientais ou número de mortos. Entretanto, se por um lado esses acidentes serviram como lições importantes para o melhoramento da segurança nuclear no mundo, por outro não foram capazes de gerar um debate educativo sobre os riscos e, acima de tudo, sobre os benefícios da energia nuclear.
Não são raras as ocasiões em que estes três episódios aparecem direta ou indiretamente relacionados para exemplificar o perigo envolvido na utilização de energia nuclear. Todavia, e considerando a multiplicidade de benefícios da energia nuclear para o desenvolvimento socioeconômico da humanidade, é fundamental separar e qualificar o debate em torno dos riscos e benefícios dessa energia. A separação inicial a ser feita refere-se aos usos militar e civil do urânio. O primeiro uso – militar – também precisa ser subdividido entre suas finalidades bélicas e não-bélicas. Aqui estão incluídas respectivamente as armas nucleares e os submarinos a propulsão nuclear. O impacto negativo de Hiroshima e Nagasaki levou o mundo à prática de não-uso de armas nucleares que, para além de qualquer dimensão moral é ainda amplamente controlada pelos regimes internacionais.
O segundo uso – civil – engloba uma variedade de fins. Nesse caso, a utilização da energia nuclear se estende da medicina a agricultura, passando pela indústria até a geração de energia elétrica. Na área civil, onde estão incluídos tanto os casos de Chernobil quanto Fukushima, o papel da AIEA merece destaque no esforço de promover a segurança nuclear – “nuclear safety” – cujo objetivo é garantir o aproveitamento seguro da energia nuclear. Tal segurança inclui a utilização internacional de procedimentos padronizados para casos de acidentes medidos a partir da Escala Internacional de Acidentes Nucleares (INES na sigla em inglês). A INES cria, a partir de sua introdução em 1990, um entendimento comum sobre o que seja um acidente nuclear, sua gravidade e, por conseguinte, as medidas a serem utilizadas para a proteção da população contra possíveis vazamentos de material radioativo. No que se refere ao lixo radioativo, ainda que não haja uma solução definitiva para o seu armazenamento, os procedimentos de separação e acondicionamento desse material respondem a regras internacionais também sob a orientação da AIEA. Finalmente, vale ressaltar que estabelece-se como limite seguro para o aproveitamento pacífico da energia nuclear o enriquecimento do urânio até 19,9%. A marca limite refere-se às dificuldades do próprio processo de enriquecimento cuja complexidade declina conforme aumenta o percentual de urânio enriquecido. Isso significa que um país que enriquece urânio para a geração de energia elétrica ou para a produção de radioisótopos – uma faixa entre 4 e 19,9% – não é de fato um país com capacidade de produzir armamento nuclear.
Em nenhum outro caso de fontes geradoras de energia de uso civil vê-se tamanha coordenação e esforço internacional com medidas segurança. Em que pese o argumento legítimo de que isso se deve ao próprio potencial destrutivo da energia nuclear, fontes como o carvão e petróleo, no acumulado de décadas de uso com impactos ambientais diretos, provaram-se incompatíveis com o desenvolvimento de um mundo sustentável e nem por isso recebem a crítica negativa, tão pouco os cuidados com o uso, que recebe a energia nuclear. Esta seguirá sendo o “patinho feio” das fontes geradoras de energia até que o tema seja abordado de forma detalhada, ponderando os riscos e benefícios dessa energia para a humanidade.
*bolsista PROMOB/PNPD do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) da Universidade de Brasília (UnB).