Fazendo uso de legítima liberdade de expressão, dias atrás um grupo de artistas, atores do cinema e da televisão, reunidos no festival de Cannes, resolveu estender uma faixa, rapidamente divulgada pela mídia, com dizeres que claramente repudiavam o suposto golpe contra Dilma Rousseff, legitimamente eleita pelo povo.
Ora bolas: o Congresso e o Senado, embora imersos na corrupção deslavada, também não foram escolhidos pelo povo? Então, pelo raciocínio empregado pelos artistas em questão, o povo escolheu “bem” Dilma (e seu vice, não nos esqueçamos), mas escolheu “mal” os deputados e senadores (entre eles, os líderes Cunha e Renan Calheiros). Não me parece um critério muito lógico, mas tão somente uma (compreensível) consideração desesperada e apaixonada, abertamente partidária e pouco ou nada imparcial, sobre um governo que, como tantos outros no passado, deixa o poder.
O problema está no uso da palavra “golpe”, totalmente inadequada para o protesto. Golpe implica uso da força, e não do voto de congressistas e senadores, para afastar um Chefe de Estado. Houve golpe em 1964, pois o presidente foi obrigado a deixar o poder para evitar uma guerra civil (supondo que realmente Leonel Brizola cumprisse a promessa de apoiar João Goulart com as tropas gaúchas). Pode-se argumentar que os argumentos utilizados para fundamentar o impeachment como, por exemplo, as “pedaladas fiscais”, carecem de consistência ou só foram o ás que a oposição tirou da manga para justificar o afastamento de um governo que levou o país ao atual desastre econômico. Pode-se argumentar, ainda, que o mesmo rigor demonstrado na análise das contas do governo de Dilma não foi usado no passado ou não é usado no presente para julgar os superávits mascarados de muitos governantes. O que não se pode, na minha opinião, é associar mecanicamente o impeachment a um ato golpista. Trata-se até de uma forma de desconhecimento do léxico da língua portuguesa ou, o que seria mais grave, de má fé.
O mesmo pode-se afirmar com reação aos protestos (também legítimos) contra a fusão do Ministério da Cultura com o da Educação. Não cabe aqui discutir se haverá ou não economia expressiva ou se esta medida precisava ou não ser tomada com tanta pressa. Parece-me que o protesto foi motivado muito mais pela sensação de derrota e pelo medo de um retrocesso nos relativamente poucos êxitos na política social dos governos Lula e Dilma.
Convém lembrar que no golpe (verdadeiro) anterior, o de 1964, dificilmente os protestos atuais seriam engolidos com facilidade pelos líderes militares golpistas, o que demonstra cabalmente as diferenças entre os dois “movimentos” políticos. Não sabemos ainda a que veio o atual (e provisório) governo de Michel Temer. Não acredito que possa reverter o quadro atual, nem que possa tirar o Brasil do atoleiro até o fim do ano (caso o impeachment seja definitivamente confirmado pelo Senado), tampouco no ano que vem. Não é o caso, porém, de adotar atitudes mecânicas e irrefletidas de oposição radical, motivadas pelo temor de possíveis perdas. Cabe aos que se afastam de um governo, tanto aos políticos profissionais, como aos correligionários e “apaixonados” em geral pelas causas sociais, uma demonstração de dignidade e de grandeza, apontando eventuais desvios e retrocessos, mas com extrema lucidez, sem mergulhos em revanchismos ou em considerações muito apressadas ou infantis.
*professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.