Não, não se trata, graças a Deus, de uma humilhação nos campos de batalha ou mesmo no âmbito diplomático. Em 08 de julho de 2014, em pleno Maracanã, durante a controversa Copa do Mundo, que o governo Dilma considerou um triunfo, a seleção brasileira sofreu uma fragorosa derrota por 7×1 para a Alemanha, o time de futebol que mais colecionou vice-campeonatos na história futebolística (além de ter sido merecidamente três vezes campeã). O que terá acontecido naquela fatídica tarde?
Houve, e ainda há, os que atribuíram ou atribuem a derrota unicamente à ausência de Neymar, como em 1998, quando a combalida seleção perdeu conjuntamente, mas a culpa foi atribuída apenas a Ronaldinho, aquele que “amarelou”. Na verdade, cometem um grande equívoco os que querem usar uma lógica racionalista para explicar um jogo que, pertencendo ao lúdico, merece explicações mais fantasiosas, associadas aos mistérios do acaso, do imponderável. O Brasil perdeu porque foi surpreendido pela rapidez dos adversários que, tal qual nos históricos exércitos, desde a época dos povos germânicos que invadiram Roma, sempre constituíram fileiras compactas e disciplinadas, habilitadas a surpreender inimigos mais concentrados na bravura individual de poucos.
Pois bem, se é preciso fantasiar e não utilizar raciocínios lógicos para explicar a derrota, poderíamos considerar a vitória dos alemães como o predomínio da rígida disciplina militar germânica, dos antigos teutos e germanos, sobre o individualismo latino, em que a aparente indisciplina é compensada pela criatividade individual de alguns, que às vezes consegue contagiar o conjunto, levando a sensacionais vitórias.
Na copa de 1970, no México, os vários talentos brasileiros atuaram em conjunto e somaram forças, impondo uma derrota retumbante contra outra seleção proveniente do coração do Lácio, que, ao procurar imitar a rígida disciplina alemã com o famoso catenaccio (retranca), ação de conjunto e defensiva, tropeçou contra a malícia e a “ginga” dos canarinhos. Em 08 de julho de 2014, não houve tal conjunção de talentos, e o comandante-geral, machucado, desnorteou a tropa, que foi pega de surpresa.
Em meados do século XIV, o grande poeta Petrarca, na famosa canção “Italia mia”, já alertava para a “raiva alemã”, para a notória índole guerreira desse povo, concluindo que se os italianos eram constantemente derrotados por eles, não era certamente pela superioridade intelectual germânica, mas tão somente pela incapacidade italiana de formar um grupo compacto, isto é, um “time”. Petrarca atribuía também as derrotas italianas à ausência do papa, o poder espiritual, que se encontrava em Avignon, na França, e não em Roma, devido aos constantes embates com o poder temporal, isto é, com os imperadores.
Dando asas à fantasia, algo semelhante aconteceu naquele 08 de julho de 2014. O conjunto venceu o individual, a “raiva” guerreira alemã venceu o “intelecto” (ou o talento) futebolístico brasileiro. O papa em questão era Neymar, cuja mente estava e ainda está principalmente na Espanha. Já o imperador poderia ser o Felipão (ou Dunga), legítimo (s) representante (s) da CBF, sempre em guerra contra “papas” como Neymar e outros craques brasileiros, que trocam o caos dos campeonatos nacionais pelos milhões de euros e pela organização mais eficiente dos campeonatos europeus.
De resto, se o futebol serve também para sublimar a necessidade humana de combate, de conflitos contra inimigos que, quando não existem, é preciso inventá-los, foi melhor ter sido derrotado nos campos de futebol que nos campos de batalha, e, sobretudo, para um temido inimigo que nunca brincou em matéria de guerra ao longo da história.
Como consolo, resta o fato de que, ao contrário dos eventos históricos que a fantasia me levou a evocar, não houve vítimas fatais após o embate daquele 08 de julho. O futebol brasileiro tomou uma lição que dificilmente será esquecida e que, tal qual a igreja medieval da época do Grande Cisma, talvez sirva como alerta para o perigo que se corre quando se desloca a sede histórica para lugares mais periféricos, desunindo e fragmentando antigos laços sólidos, desorientando e dispersando as tropas e as multidões.
Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.