A peste negra assolou a Europa na Idade Média e atingiu o auge em meados do século XIV, mas os seus efeitos foram sentidos até o século XVIII, ceifando um terço da população europeia e provocando efeitos que repercutiram em todos os setores da sociedade, inclusive no setor econômico. A corrupção brasileira que, até prova em contrário, atingiu o ápice no governo Dilma (embora exista desde a época de Cabral) ainda não fez diretamente vítimas fatais, mas indiretamente já provocou estragos que, assim como a peste bubônica medieval, repercutirão por muitos anos (oxalá não por séculos) na sociedade brasileira.

Ora, a peste europeia foi provocada pelas pulgas que se encontravam nos ratos. Na corrupção brasileira, são ratos de terno e gravata (outrora também de macacão) que se encarregaram de espalhar a “bactéria”. A peste bubônica encontrava terreno fértil na escassa higiene das cidades medievais; no Brasil de hoje, a sujeira incrustada na estrutura do Estado também custa a sair, favorecendo ratos de colarinho branco de todas as espécies, magros ou gordos, machos e fêmeas, barbudos ou não.
Inicialmente, os europeus culparam os pecados cometidos pelos cristãos como a causa principal da pestilência. Depois, preferiram culpar os judeus. Cá entre nós, há os que culpam a colonização portuguesa, ou a escassa propensão do brasileiro para o trabalho. Recentemente, andaram culpando a conjuntura econômica internacional, mas há os que culpam até mesmo a CIA ou o FBI.
Há uma única diferença, porém, entre a doença endêmica da Europa medieval e a nossa corrupção: a peste não poupava ninguém, afetando igualmente membros do clero e pecadores, nobres e miseráveis, feudatários ou membros da monarquia, enquanto a nossa corrupção afeta mais diretamente os pobres e a classe média empobrecida, que pagam o preço final pela disseminação dos ratos e dos seus malefícios.
Para debelar completamente a peste, a Europa empregou quase três séculos, pois não havia “lava-jatos” eficientes para limpar toda a sujeira acumulada. Aqui, a nossa operação “Lava Jato” já está correndo o risco, segundo alguns, de se tornar uma operação permanente, sem uma data precisa para o término, bloqueando o “dinamismo” (?) da economia corrupta que, bem ou mal, dentro de toda a sujeira, sempre moveu a sociedade.
Segundo a historiografia mais recente, porém, a peste bubônica, assim como as grandes guerras, teve alguns efeitos positivos, pois diminuiu consideravelmente a pressão demográfica, permitindo que as escassas provisões de alimentos passassem a ser mais do que suficientes para a população. Além do mais, houve um “esvaziamento” das maiores cidades e, consequentemente, mais higiene e espaços livres. Entre nós, o que poderá acontecer, depois de todas as varreduras policiais e de todos os desentocamentos dos ratos? O que sobrará da limpeza provocada pelos nossos “lava-jatos”?
Talvez, assim como na Europa medieval, haja uma renovação provocada pela seleção natural, em que só os mais fortes sobreviverão. Uma vez eliminados apenas os vetores naturais, isto é, os ratos, temo, porém, que as pulgas possam resistir por muitos séculos ou até milênios, pois os venenos utilizados para eliminá-las perderão a eficácia com o passar dos anos. E aqui, há uma fundamental diferença que nos deixa em desvantagem com relação aos europeus medievais: não conseguimos descobrir se o que realmente provoca a nossa doença está associado a pragas naturais. No nosso caso, as causas devem ser bem mais complexas, e talvez tenhamos iniciado o combate da maneira errada. Antes de caçar e eliminar os ratos, nós precisávamos eliminar o ambiente propício para a proliferação dessas pragas. Enfim, se a medicina medieval soubesse o que realmente provocava a peste, tantas vidas teriam sido poupadas e muitos judeus não teriam sido objeto de perseguição. Se nós tivéssemos, nesses anos todos, nos preocupado em varrer nosso quintal eliminando cada poeirinha, não precisaríamos agora lavar indefinidamente com jatos a sujeira encardida, sem data certa para a limpeza final.

Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.