Para quem aprecia o bom cinema italiano dos anos 60 e 70, isto é, antes da inexorável decadência que em parte foi motivada pela morte dos maiores cineastas e pela tímida renovação de talentos, a trajetória de Cunha pode evocar dois filmes, um “popularesco” e outro “de arte” ou “cinema de autor”, como preferem os italianos. Trata-se de um exemplar perfeito do cinema político do inicio dos anos 70, isto é, “Investigações sobre um cidadão acima de qualquer suspeita”, dirigido em 1970 por Elio Petri e com Gian Maria Volonté e Florinda Bolkan nos papéis principais, e de uma comédia estilo pastelão, mas com toques de sátira política, com o curioso e interminável título de “Um oficial nunca se rende, nem mesmo diante das evidências, assinado Coronel Buttiglione”, de 1973, dirigido por Mino Guerrini. Em que medida ambos podem lembrar a trajetória de Cunha que hoje, finalmente, renunciou à presidência da Câmara dos Deputados?

No primeiro caso, do filme “sério” e politicamente engajado de Elio Petri, um inspetor policial do alto escalão, na Itália do final dos anos 60, às voltas com os contínuos atentados terroristas de radicais da esquerda e da direita, assassina a amante (interpretada pela cearense Florinda Bolkan) e, numa espécie de jogo em que testa o próprio poder, dá todas as pistas aos investigadores com o intuito de levá-los a concluir que o culpado não poderia ser outro senão o próprio chefe, o responsável pela aplicação das leis. No final, é claro, diante de enormes evidências, ele acaba sendo levado a julgamento, mas é inocentado ironicamente pelo falso testemunho de um militante extremista de esquerda que ele conseguiu chantagear. No segundo caso, o da comédia popular de Guerrini, um coronel, comandante de quartel, extremamente atrapalhado e um tanto ridículo na aplicação das leis militares, sobretudo no que diz respeito ao asseio dos seus soldados, envolvendo-se em uma série de “gags” (de comicidade fácil, típica das chanchadas da época), no auge de uma das inúmeras trapalhadas, acaba sendo vítima de uma explosão e, uma vez no céu, não se conforma com os longos cabelos e com a barba de Cristo!
A trajetória de Cunha lembra os dois personagens, o inspetor de polícia e o atrapalhado comandante do quartel. Desde o início, todos os indícios e provas estavam à disposição de todos, mas Cunha, à semelhança do personagem interpretado por Volonté, desafiava a todos que provassem a sua culpa, certo de que, pela relevância do cargo ou por acordos espúrios com o Poder Executivo, jamais seria deposto ou preso. Cunha, até onde se sabe, não assassinou nenhuma amante, mas a sua legítima mulher estourou todos os limites do cartão de crédito em compras no exterior, num esbanjamento digno de uma amante de novo rico sem escrúpulos. Nas suas atabalhoadas tentativas de defesa e de adiamento infinito do julgamento do próprio caso, Cunha lembra também o atrapalhado Coronel Buttiglione, pois mostrou um rigor e uma impassibilidade que beiraram o ridículo, com uma disposição a nunca se render, nem mesmo diante das evidências, como um bom oficial.
Hoje, com a esperada renúncia, Cunha se distancia um pouco das conclusões dos dois filmes citados, à medida que, diferentemente do policial do filme de Petri, acabou finalmente sendo julgado, mas recebeu uma punição, ainda que provisória e apenas política. No entanto, mais próximo da chanchada de Guerrini, a “morte” política do político carioca foi precedida de bravatas dignas do atrapalhado comandante do quartel, pois, há não muito tempo, ele prometeu que se fosse condenado “levaria consigo para o inferno” centenas de outros políticos. Resta saber se a vida imita os filmes ou se os filmes imitam a vida. Espero que, no caso específico de Cunha, os fatos políticos imitem antes o filme de Guerrini que o de Petri, pois ao menos o comandante trapalhão acabou sendo vítima da própria tirania, enquanto o inspetor safou-se com chantagens espúrias, aliando-se ao inimigo que deveria combater. Receio, porém, que o desenrolar dos fatos aponte para uma imitação das chanchadas da Atlântida dos anos 50 ou para um “horror movie” de segunda categoria, e que Cunha, assim como Collor e outros tantos, retorne como Jason, a assombração horripilante do filme “Sexta-Feira 13”.

Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.