Todos acompanham estarrecidos os debates sobre a corrupção, as revelações do dia e os culpados do momento. Parece-nos que esses debates sofrem de miopia penal. O termo indica a tendência de individualizar o problema da corrupção do sistema político que é, na verdade, geral. Na perspectiva penal, considera-se corrupto esse ou aquele político que cometeu esse ou aquele delito. Essa perspectiva reduz o debate sobre a crise política do país em avaliações da moralidade e da legalidade de comportamentos individuais. E acredita-se (ou finge-se acreditar) que a solução pode ser dada pela repressão penal. É por isso que juízes, promotores e agentes policiais tornam-se heróis e celebridades. A imprensa descobre cada dia irregularidades e a opinião pública acompanha os capítulos de um seriado que parece não ter fim.

A miopia penal não possui fundamento racional. Quem acredita realmente que a punição de certas pessoas ou a troca de governantes poderá trazer o fim da corrupção? Nenhum esquema mafioso foi desmantelado após a morte do chefe e nenhum “salvador da pátria” cumpriu suas promessas. Os problemas sociais não se resolvem enquanto combatemos os efeitos e não suas causas. Sempre mais pessoas compreendem isso em relação à crise brasileira. Por essa razão encontramos numerosas referências à “corrupção sistêmica”. Mas é necessário ter cuidado na utilização desse termo. Não deveríamos se referir à corrupção sistêmica, para depois culpar apenas os adversários, como se o sistema corrupto fosse composto por um único partido ou por certo grupo de dirigentes políticos.
Admitindo, ao contrário, que a atual crise política está intimamente ligada à corrupção do sistema político em sua totalidade, chegamos a duas importantes conclusões. A primeira é que a perseguição e punição de atores do sistema político e econômico em nada afetará os mecanismos da corrupção. A punição pertence ao registro individual e não ao macro-registro da organização política. Somente esse último afeta a coletividade e, para enfrentar o problema devemos ir muito além dos relatos sensacionalistas sobre encontros, escutas, propinas e prisões do dia.
A segunda conclusão é que as causas da corrupção estão vinculadas à mutação do sistema político que abandonou seus códigos, suas formas de funcionamento e seus objetivos. A política deixou de ser o lugar de confronto de projetos de sociedade e de deliberação para formar maiorias e impor decisões. No atual sistema político, os meios econômicos, em última instância o dinheiro, assumem o papel decisivo. Eleições são orquestradas como espetáculos e financiadas por grandes corporações. Todas as pesquisas mostram que ganha a eleição quem tiver o apoio dos grupos econômicos mais fortes e não quem convence a maioria com base em discursos sinceros sobre interesses e alternativas. Nesse cenário desolador, pouco interessa se uma doação milionária é legal, ilegal ou coberta por um tênue manto de legalidade. O crucial é a subversão do funcionamento do sistema político, sua corrupção pelo dinheiro.
Alguns meses atrás, a filósofa estadunidense Wendy Brown publicou um corajoso livro intitulado Undoing the Demos. Com farta documentação e sólidos argumentos, Brown explica como o sistema político tornou-se monetarizado e foi incorporado aos mecanismos de mercado. O debate político foi substituído pela “governança” e a vontade popular pelos “técnicos”. As grandes corporações investem na política para influenciar as decisões. Infelizmente, a legislação eleitoral e os tribunais constitucionais aceitam essa confusão de procedimentos, valores e códigos. Consideram que a liberdade das empresas permite que elas usem recursos financeiros para apoiar a campanha de “seus” candidatos e transformar a política em luta publicitária para seduzir os eleitores.
O mandamento constitucional da soberania popular e o dever dos eleitos de representar seus eleitores se tornam sinônimo de utopia ou mesmo de ironia. A política funciona como braço da economia e afasta as preocupações democráticas. O dinheiro torna-se argumento político e os limites entre legalidade e ilegalidade perdem sua nitidez. Esse é o solo no qual nascem práticas de corrupção. Enquanto não mudar a matriz da monetarização, nada e ninguém poderá dizer que combate a corrupção.

*Professor de direito constitucional da Escola de Direito de São Paulo da FGV.

**Professora de direito público da Unesp.