O mito é poderoso cimento ideológico. Quando a narrativa conta com imagem e som, o efeito de realidade para o receptor é ainda maior. A telenovela “Velho Chico”, da TV Globo, com texto de Edmara Barbosa e Benedito Ruy Barbosa, é relato suficientemente flexível para integrar outros mitos sobre a questão agrária e sua história no Brasil. Com direção artística de Luiz Fernando Carvalho, de longe, a telenovela mais sofisticada que a TV brasileira já apresentou.
Em 1960, Afrânio retorna de Salvador a Grotas de São Francisco, onde mora sua mãe, Dona Encarnação, após a morte do pai e do irmão que estava destinado a sucedê-lo. Sem vocação, assume o lugar do Coronel Jacinto. Com mão firme e apoiado nos jagunços do seu pai, mantém as alianças e a exploração dos pequenos agricultores, que lhe vendem sua produção. Só o Capitão Ernesto Rosa o enfrenta, e o jovem Coronel Afrânio Saruê o manda matar. Afrânio casa com Leonor e tem com ela dois filhos, primeiro Maria Tereza e depois Martim. Leonor morre no último parto e Iolanda, cantora e antiga namorada, passa a morar com ele. Belmiro e Piedade, família de retirantes que havia sido acolhida pelo Capitão Rosa se tornam os principais oponentes do Coronel. Santo, o filho mais velho de Belmiro e Piedade, se apaixona por Maria Tereza. O Coronel Saruê os afasta. Santo casa com Luzia e, Maria Tereza, grávida de Santo, com o deputado Carlos Eduardo e abandona Grotas.
Anos depois, Maria Tereza retorna com seu marido e seu filho Miguel, que estudou em Europa e pretende se ocupar da terra da família, recuperando o solo esgotado pela prática de uma agricultura predadora dos recursos hídricos e dos nutrientes. Martim, renegado pelo pai, após correr o mundo como fotógrafo, também volta para recuperar a história de Leonor, sua mãe, que não chegou a conhecer. Nesse meio tempo, Santo e seu irmão Bento formaram uma cooperativa de produtores para comercializar sua produção sem a intermediação do Coronel Saruê.
Em Grotas, Bento é vereador e representa os interesses dos pequenos produtores. O vereador é apaixonado pela professora da escola local, Beatriz, filha da benzedeira da cidadezinha, conhecedora das matas e das plantas medicinais. Santo e Luzia têm uma filha, Olívia, que quer modificar as práticas agrícolas da cooperativa. O coronel Saruê continua exercendo seu poder por meio da violência do seu jagunço Cícero, que cresceu junto com Maria Tereza e mantém por ela uma paixão intensa.
Ainda que o enredo comece nos anos de 1960, na liberdade que a ficção autoriza, misturam-se tempos diferentes convivendo no Brasil contemporâneo. A composição dos personagens, incluído o figurino e marcação da atuação, assinala três complexos históricos: o velho latifúndio, a tentativa da modernização e democratização com a formação de cooperativas de agricultores familiares e o período atual. Mas o enredo sugere não apenas uma sucessão, mas um engavetamento de modelos que se interpenetram e se chocam. A abertura dramática, com a música Tropicália, de Caetano Veloso, sublinha esse complexo.
A síntese que resolverá a tensão entre o latifúndio e a agricultura familiar, tudo indica, será a de uma iniciativa da nova geração de grandes proprietários que promoverá, em escala, uma agricultura ao mesmo tempo científica e sustentável. Uma combinação de revolução verde com agroecologia e superação do conflito social por meio da integração das cooperativas às cadeias produtivas agroexportadoras (no caso, exportadoras de frutas), num “todos ganham” apontado pelo que já foi chamado de “novo mundo rural”. Assim, o moderno agronegócio “sustentável” harmonizará a poliatividade, que inclui agricultores familiares, pescadores, artesões e comerciantes.
Não se trata apenas de uma questão de modelo de manejo do solo, de técnicas agrícolas que esgotam os nutrientes e descuidam das nascentes. Trata-se também de práticas políticas associadas à estrutura agrária e que aparecem bem representadas na promiscuidade entre os políticos e os grandes proprietários. Por um lado, no poder local, com a dominação por meio do terror da pistolagem, do controle do cartório e do executivo municipal, de alguma maneira contestada pela ação do vereador Bento. Por outro, em escala nacional, com a presença do genro do latifundiário como deputado em Brasília. Mas o enredo também dá conta de representar as ações dos mediadores de conflitos, como o padre Benício, com um histórico de luta na defesa dos pobres, fato que o levou a sofrer perseguição durante a ditadura.
A síntese aparece como carnadura em todo um emaranhado de histórias familiares que se entrecruzam em afetos, desencontros e mágoas antigas. Com a exceção da ciumenta Luzia, a sociabilidade representada no enredo faz das mulheres fio de continuidade entre as gerações e elemento reparador em momentos de descalabro. São elas que evitam a catástrofe. Se a mestiçagem de branco com índio e com negro arranca das gerações anteriores, é a última geração que aparece capaz de superar a condição subalterna da mulher e a distância social. Todo indica que a solução será dada pelos meio-irmãos Miguel e Olívia, homem e mulher, aquele que aprendeu fora do país e aquela que nunca saiu da terra, mediados pela ciência e a superação da sociabilidade arcaica.
A cenografia requintada e o tratamento da imagem casam com uma trilha sonora com papel fundamental na construção da narrativa. Caravana, de Alceu Valença e Geraldo Azevedo, por exemplo, aproxima o movimento do Rio São Francisco com o andamento da história, que precisa avançar, ora lenta, ora rapidamente, marcando um ritmo de inevitabilidade, para além das vontades humanas e da finitude da existência lamentada na sublime Inceleça pro amor retirante, de Elomar. O enredo não dribla a desigualdade, ao contrário, a aponta e sublinha com imagem e trilha sonora. Vejamos o uso narrativo de Triste Bahia, poema de Gregório de Mattos musicado por Caetano Veloso. Tampouco ignora a luta de vida e morte: o Réquiem para Matraga, na voz reconhecível de Geraldo Vandré, diz e evoca um tempo histórico de conflito. O papel estruturante da violência na configuração da ordem social é ressaltada, explicitamente, no caso do coronelismo: “Oh, Senhor cidadão, eu quero saber com quantos quilos de medo se faz uma tradição?”, da música Senhor Cidadão, de Tom Zé.
Haverá perdas. Provavelmente a pistolagem dos jagunços será sacrificada e não terá lugar na nova ruralidade. Mas o “amor à terra” de Dona Encarnação, a velha matriarca, parece ter reencarnado na geração de netos e bisnetos, reencontrando o sangue de filiações cruzadas, como sublinha a música Mortal loucura, outro poema de Gregório de Matos, este musicado por Zé Miguel Wisnik, na voz de Maria Bethania. O personagem Martim, filho renegado do latifundiário, que procura a história da sua origem, é um dos articuladores que fará reconciliar o passado e o presente. Chama a atenção que ele não é um historiador, nem um jornalista, ele é um fotógrafo. É a imagem visual que articula os tempos pela procura e recuperação do perdido: o filho preferido de Dona Encarnação afogado no rio São Francisco e Leonor, a mãe do seu neto, que morreu de parto. A novela assim se configura como um grande relato sobre o Brasil.
Cabe assinalar que a proposta desta novela foi preterida em várias oportunidades. Em ano eleitoral, e com grande preferência pelo Partido dos Trabalhadores na região nordeste, é compreensível que a TV Globo tenha optado por “Velho Chico”. Longe de se contrapor às políticas sociais de alívio à pobreza dos governos petistas, particularmente presentes na região, o enredo as ignora. Durante o desenvolvimento da história, a reforma agrária não aparece como horizonte programático em momento algum. O grande conflito não é entre assalariados e patrões, e nem entre sem terras e latifundiários. A disputa acontece na comercialização e no escoamento da produção.
Não longe das locações da telenovela, numa região degradada do Sul da Bahia, o suíço Enrst Gotsch desenvolve o Projeto Agenda Gotsch, com apoio da Fazenda da Toca (Itabina-SP), de Pedro Paulo Diniz. O objetivo é implantar uma área de agrofloresta. Já a Fazenda da Toca produz orgânicos em grande escala. Há um mercado para esses produtos e o agronegócio não despreza esse nicho, além de fazer parte da “agenda positiva” do agronegócio. A mensagem que a novela passa é que toda a produção pode ser levada adiante assim, que todos os consumidores teriam acesso a esses produtos e que a desigualdade social pode ser superada sem mexer na estrutura fundiária e por uma opção tecnológica das grandes cadeias produtivas, sem qualquer necessidade de luta. Só que não. A TV Globo captura nossos mitos num procedimento de seleção e montagem que mostra e oculta.
Vivemos num período marcado pela especialização produtiva que destina o grosso do nosso território à produção de uns poucos commodities agrícolas. Dentro do mercado mundial capitalista não há compradores suficientes para uma produção orgânica em escala equivalente. A produção orgânica destina-se a um setor reduzido com maior poder de compra e não para as classes trabalhadoras do campo e da cidade. Os cortadores de cana comem o arroz e feijão produzidos com doses enormes de agrotóxicos.
Entretanto, o que fica no ar é a necessidade dessas classes trabalhadoras recuperarem para si o grande relato.
*Docente da Faculdade de Ciências e Letras, Câmpus de Araraquara, e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe, ambos da Unesp.