Dia 1° de julho, o vice-presidente da República, Michel Temer, ocupante interino da chefia do executivo, derrogou o decreto 8515/2015, assinado pela presidente Dilma Rousseff, em setembro do ano passado. O decreto 8515/2015 transferia para o Ministro da Defesa um conjunto de prerrogativas ligadas à gestão das Forças Armadas, incluindo nomeações, promoções, e transferência ou reforma de oficiais da reserva. À época, o decreto esteve envolto em polêmica e provocou a irritação dos militares, chegando, inclusive, a ser objeto de um artigo que questionava sua legalidade, publicado na revista do Clube Militar. O decreto assinado por Temer na sexta-feira foi publicado no último dia 7 de julho.
A revogação do decreto foi assinada em reunião amistosa de Temer com os comandantes das três Forças e os ministros interinos da Defesa, Justiça e Casa Civil. Em entrevista, o ministro da Defesa afirmou que se tratava de restaurar a competência das forças, tirando-lhes o “voto de desconfiança” que lhes havia sido dado. Excluindo o fato de que votos de confiança ou desconfiança são característicos de regimes parlamentaristas, a declaração do ministro soa, ainda assim, estranha: votos de confiança assinalam uma ratificação do respaldo de determinados atores políticos sobre a capacidade de outro ator permanecer na condução de um determinado processo. Ocorre que a uma burocracia do Estado – sobretudo uma que é armada – não compete conduzir processos políticos de modo que não cabe dar-lhes votos de confiança ou desconfiança, mas sim diretrizes claras e meios coerentes para executá-las.
É verdade que o decreto 8515/2015 possuía claras limitações operacionais, visto que sua execução demandava uma governança da Defesa que o Brasil, trinta anos após o fim do regime autoritário, ainda não possui. O Ministério da Defesa brasileiro é um dos mais jovens do continente americano, tendo sido criado apenas em 1999 (o da Argentina, por exemplo, é de 1958) e, ainda hoje, permanece como uma burocracia fortemente fardada – com militares ocupando diversos postos de chefia dentro do organograma da pasta.
As falhas do decreto, porém, não justificam sua derrogação. Ao contrário, o decreto 8515 abria espaço para avançar na condução política da defesa, sem dúvida um déficit do qual padece a jovem democracia brasileira. Ao contrário do que sustentam alguns críticos, essa condução política não demarca uma “ideologização” das Forças Armadas – nem tampouco sua “bolivarianização”, termo que, aliás, não quer dizer quase nada.
A condução política da defesa, em termos gerais, significa apenas o enquadramento da Defesa Nacional como política pública que, como tal, tem sua condução como competência do poder público legitimamente estabelecido através do voto. Exige, portanto, que o conteúdo político da defesa seja determinado por aqueles legitimamente investidos para tal. Tal condução deve estar pautada no respeito às definições constitucionais sobre o tema, bem como no programa de governo apresentado à sociedade e referendado por ela nas urnas.
Neste ponto, olhar alhures pode ser esclarecedor. As principais referências conceituais a respeito da condução política da defesa vêm da insuspeita Espanha, e são baseados na experiência deste país no processo de transição para a democracia após o regime franquista. Não é de causar estranheza a nenhum observador atento das qualidades de um regime democrático: se a legitimidade para organizar um instrumento para uso letal da força é atributo essencial do político, é óbvio que o comando desse aparelho deve estar em mãos daquele que detém legitimidade política para tanto. Trata-se de uma demanda comum a qualquer democracia, e ainda mais relevante em casos como o do Brasil, que tem um lamentável histórico de ingerência militar na política.
Não existe, portanto, nenhum verniz antidemocrático em tentar reforçar as rédeas do político sobre as Forças Armadas. Antidemocráticas são a leniência e o aplauso com a preservação de uma cultura de autogestão das Forças Armadas que é incompatível com os elementos mais pilares de um Estado Democrático de Direito. Igualmente grave é o descompromisso em levar a defesa ao debate público, apartando da cidadania um tema cujo Ministério detém o quarto orçamento da República e conta mais de 300.000 militares. Ao derrogar o decreto 8515/2015, o presidente interino perde uma janela de oportunidade para fortalecer o Ministério da Defesa como instituição, retrocedendo em um dos pouquíssimos e excessivamente tímidos passos dados pelos governos petistas no sentido de promover uma condução política da defesa.
*Pesquisador do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e pesquisador do GEDES – Grupos de Estudos de Defesa e Segurança Internacional da Unesp de Franca.