Os recentes ataques da Alemanha, as explosões constantes de bombas no Afeganistão e os massacres de todos os tipos que invadem as nossas casas pela televisão ou pela internet nos acostumaram de tal maneira com os horrores dos atentados e assassinatos que nada mais nos espanta. Trata-se o mais das vezes em saber quantos foram os mortos e se se trata de um ato praticado por um demente ou por um terrorista. Muitas vezes os próprios jornalistas especializados no assunto não conseguem fazer uma nítida distinção entre os atos praticados por um insano e as ações motivadas por defensores de todos os tipos de causa, do movimento pela causa islâmica e pela expulsão de Israel às associações xenófobas ou homófobas.

Num país como o nosso, em que o número de homicídios anuais é muitas vezes maior do que o do número de mortos em guerras civis mundo afora, não deveria parecer espantoso o fato de que estamos no dia a dia sempre à espera do próximo atentado ou do próximo acidente rodoviário, aéreo ou ferroviário para fazer a contagem dos mortos, atribuindo gravidade maior ou menor ao evento em função do maior ou menor número de vítimas, e esperando que nos digam definitivamente qual foi a motivação do atentado ou se houve falha mecânica ou humana no acidente. No entanto, o nosso espanto deriva provavelmente do contato diferente que cada brasileiro tem com a morte quotidiana, dependendo principalmente da classe social a que pertence, entre outros fatores mais ou menos sempre relacionados ao nível de renda. Evidentemente, os menos afortunados convivem mais facilmente e com maior resignação com a barbárie costumeira.
Guardadas as devidas proporções, algo semelhante ocorria na Idade Média da Europa, sobretudo nos anos terríveis da peste negra, em meados do século XIV. Não se sabia a identidade possível do próximo morto, nem quantos morreriam, nem onde morreriam. Também se desconheciam os supostos “autores” do “crime” de disseminação da terrível doença. Além do mais, a peste, embora afetasse a todos, ricos e pobres, não atingia com a mesma dureza as classes mais abastadas. Hoje em dia, num mundo em que as pessoas com acesso aos inúmeros meios de comunicação vivem em constante sintonia, estamos sempre na expectativa de onde a morte vai golpear com mais ou menos intensidade, a quem vai atingir, quando e onde, e quem serão os autores ou responsáveis diretos e indiretos pelo próximo massacre.
Quando não nos atinge diretamente, isto é, quando não envolve um nosso amigo próximo, um parente, o vizinho ou mesmo uma figura pública que de tão pública se tornou uma espécie de amigo virtual, temos a sensação de estar assistindo a um vídeo game macabro e mórbido, no qual não podemos interferir, mas que é sempre muito dinâmico, incessante, com imagens variadas de casas destruídas, gritos medonhos e crianças esfarrapadas. Tudo o que vemos está realmente acontecendo? Como é possível? Não seria apenas mais um jogo, uma simulação ou uma farsa? Infelizmente não é, pessoas em carne e osso estão morrendo, mas não deixa de nos parecer mais um jogo eletrônico, com o qual, porém, não podemos interagir, nem que seja para impedir que continue matando, indefinidamente.
Outra questão se refere ao papel que cada participante deve assumir nesse jogo. De acordo com a mídia mundial, ao contrário do que se suspeitava, o recente atentado num shopping center de Munique foi obra de um “louco”, isto é, de alguém que se vingou contra a sociedade que o rejeitava, talvez por não ser de origem alemã, talvez por ter sofrido bullying na escola ou talvez por motivos que nunca saberemos. Resta saber o que se entende por “louco”! Não foi loucura maior a de quem permitiu que ele tivesse livre acesso a armas perigosas, mesmo demonstrando evidente desequilíbrio? Não constitui atitude incompreensível, insana e desequilibrada a de governos que não conseguem ou não querem evitar a disseminação incontrolável de armas no mundo inteiro?
O conceito de louco é bastante elástico. As personagens “loucas” dos contos e romances de Luigi Pirandello geralmente são tão sábias e lúcidas que não mais conseguem interagir com a vulgaridade e com a falta de consciência dos demais, e por isso buscam deliberadamente a marginalização ou acabam sendo trancafiadas em asilos ou manicômios. Na sociedade americana, por exemplo, a economia ultradinâmica do país, sempre produzindo “vencedores” e “perdedores”, assiste constantemente, talvez mais do que em qualquer outro país, a tristes espetáculos de “perdedores” que se tornam “loucos” e atiram a esmo contra multidões, suicidando-se em seguida ou sendo mortos pela polícia. No entanto, novamente cabe a questão: a insanidade maior não está verdadeiramente inserida nessa sociedade que constantemente incentiva a concorrência e separa os indivíduos em vencedores e perdedores? Quando um perdedor não se conforma em não mais participar do jogo, lhe dão o direito de comprar uma arma e vingar-se dos que o derrotaram e expulsaram. Ele sabe, porém, que o jogo vai terminar ali para sempre, assim que concluir o seu gesto de folia.
O círculo vicioso de um mundo que produz atrocidades e gera perdedores que depois serão chamados de loucos ou terroristas está muito longe de ter um fim. Enquanto não modificarmos profundamente o nosso modo de tratar os que sucumbem diante das tantas pressões diárias, não aceitando equilibradamente as inevitáveis derrotas, sejam elas no plano pessoal, sejam elas no plano coletivo ou político, continuaremos a participar involuntariamente do vídeo game mais macabro e horripilante que a fantasia humana poderia ter inventado.

*Professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.