– Eu serei famosa.
– Todos nós seremos.
(Janis Joplin em diálogo com Bob Dylan in: Janis Joplin: Little Girl Blue (2016)
Bob Dylan ganhou o Nobel de Literatura. Para quem não é fã, não acompanha o “never ending tour” ou as “tangled up in news”, certamente foi uma notícia recebida com desconfiança ou mesmo escárnio. Uma reação relativamente comum foi associar o prêmio a um ícone da “esquerda americana”. Mas será que isso se sustenta?
Reinaldo Azevedo no seu “pré-editorial”, no programa de FM “Os Pingos nos Is” do dia 13/10/2016 questiona se o que Dylan faz seria de fato “literatura”, questiona talvez até se Bob Dylan poderia ser um “poeta”. Foi além e disse que enquanto a Academia premia Dylan, não premia Jorge Luis Borges. Como se Borges e Dylan fossem contemporâneos. Para Azevedo, o problema seria que Borges como conservador não teria espaço, enquanto Dylan enquanto “esquerdista” leva o prêmio. Carlos Eduardo Lins da Silva, na folha do dia 14/10, enfatiza a contribuição de Dylan, mas salienta também o caráter político da escolha.
Gostando ou não, o prêmio já foi dado. Vale destacar algumas características da obra desse artista, que nos ajuda a entender certamente os EUA dos últimos 50 anos.
Bob Dylan é em si um personagem. Sua obra supostamente autobiográfica, Chronicles, é no fundo uma autobiografia de um personagem. É impossível tentar ser factual ao ler essa obra, assim como é impossível ser preciso na interpretação de suas letras. Em boa medida, nisso reside sua beleza e sua atemporalidade. Não por menos, há tantas referências William Shakespeare e a Bíblia e suas canções de amor transcendem certamente as referências espaciais, religiosas ou geográficas. Conservadores como Leo Strauss e Richard M. Weaver certamente não poderiam criticar Dylan nesse ponto.
Bob Dylan é um mosaico caótico e incoerente da chamada Folk Music. Para Dylan ser Folk é apenas ser contemporâneo. E por Folk devemos minimamente entender como uma espécie de “Melting pot” do Blues com o Country, com o Bluegrass, com a música Gospel e tudo isso, com boas pitadas de Rock and Roll e poesia Beat. Bob Dylan traz no seu olhar perdido e em baixo de seus chapéus, os versos de Allen Ginsberg, Jack Kerouac e claro, Walt Whitman. Sua harmônica remete aos bluesmen e cantores/trovadores errantes como Hank Willians Jr – o próprio que o inspirou a compor “like a Rolling Stone” ou mesmo, Dave Van Ronk, sua principal referência no início da carreira em Nova Iorque. Esse sentimento “on the road” perpassa sua obra. Está também nos filmes que participou, atuou e mesmo ajudou a escrever como “Renaldo and Clara” de 1978 e o mais recente, “Masked and Anonymous” de 2003.
Impossível dissociar Dylan da influência country. Woody Guthrie e Johnny Cash são talvez as duas maiores influências para o jovem de Duluth, Minnesota. Sua fase elétrica que desapontou os fãs na passagem dos anos 60, certamente traz a influência e ao mesmo tempo influenciou Jimi Hendrix, Tom Petty a Mark Knopfler.
Aos que consideram o universo de Bob Dylan triste e apocalíptico, além dos já citados Hank Willians Jr., Woody Guthrie e Johnny Cash, certamente, Townes van Zandt poderia ser algo como um “Bob Dylan mais coerente”. E certamente Dylan concordaria com Zandt quanto a ideia de que, se a música remete a um mundo sem esperança então podemos vivenciá-la pela música e assim podemos seguir com nossas vidas (com esperança).
O amigo de Dylan e companheiro de banda no período do Traveling Wilburys, Roy Orbison, também tem uma estética que sintetiza essa visão de mundo “desencantada”. Mesmo assim, não podemos dizer que nem Orbison, autor do clássico “Oh Pretty Woman”, nem Dylan com sua por exemplo “Simple Twist of Fate”, deixam de sentir ou falar de amor de uma forma que cria empatia de forma atemporal.
Quem associa automaticamente Bob Dylan à contracultura obviamente não está errado. São muitas as canções de protesto e muitas letras que são próprias desse universo contracultural. Dylan esteve próximo de outros que levaram isso mais a fundo (ou talvez mais a sério) como Joan Baez e o the Grateful Dead. E sem dúvida, algumas de suas letras ganham outra dimensão talvez mais épica ou psicodélica em versões criadas por Jimi Hendrix ou Leon Russell para suas canções.
Mas ele muito mais do que isso. Na passagem dos anos 70 para os 80, Dylan foi fundo e profundo em sua fase “gospel”. Dylan nascido em família judaica se converteu ao cristianismo. Dylan estudou a Bíblia a sério – seu interesse religioso era antigo. Fala-se que em pleno Woodstock, Dylan não largava sua bíblia de estudo. No final dos anos 70, segundo pesquisa de Michael J. Gilmour (2011), Dylan frequentou uma escola de estudos bíblicos na Califórnia. As referências ao cristianismo na obra de Dylan dialogam com uma forte influência fundamentalista, talvez o falecido pastor Jerry Falwell, admirasse essas abstrações e leituras de Dylan do Genesis e do Apocalipse.
Dylan não foi o único artista pop dos anos 60 que se viu numa encruzilhada de fé na pré era Reagan. Cat Stevens escolheu o islamismo quando o islã ainda não era o que é hoje para o Ocidente (mudou de nome e se apresenta como Yusuf Islam). George Harrison, certamente decepcionou alguns fãs dos Beatles ao escolher o hinduísmo e muitos fãs do Alice Cooper demoraram em entender a conversão ao cristianismo. O álbum de Dylan de 1979, Slow Train Comming tem algumas preciosidades de seu universo autoral, como até hoje, está ali a favorita de corais evangélicos – Gotta Serve Somebody. John Lennon reagiu a essa música com a “Serve Yourself”. Antes de muitos conservadores passarem a defender Israel, Dylan, que visitou a terra Sagrada no início dos anos de 1980, compôs em 1983 Neighborhood Bully, cuja letra fala de uma terra cercada por inimigos.
Segundo Michael J. Gilmour (2011), Slow Train Coming não pode ser escutado ou lido ou interpretado como um “ponto fora da curva”. O disco anterior de 1978, Street-Legal, já apontava sinais para o que estava se passando, assim como o disco de 83, que supostamente marca o fim dessa fase, Infidels, traz influências e diálogos com histórias e passagens bíblicas – em síntese, a influência religiosa marcou e passou a ser parte do estilo de composição de Dylan.
Gilmour (2011), quando pensa na trajetória artística de Dylan lembra com muita propriedade do conceito de Flâneur, de Baudelaire, lembra também de Edgar Allan Poe e quando cita a obra Chronicles, nos lembra como a escrita ali remete ao Arcades Project de Walter Benjamin.
Dylan tem também o mérito, e isso tem sido cada vez mais um mérito nos dias de hoje, de não se levar a sério. Gravou um disco de “canções natalinas”; continua com sua “never ending tour” mesmo quase aos 80 e, apesar das críticas pela qualidade de sua voz. Dylan fez propaganda de lingerie e teve um programa de rádio via satélite cheio de bom humor. Entre um disco denso e outro, há álbuns como a atual, Fallen Angels, no qual parece responder a aqueles que o acusam de “cantar mal” fazendo versões para músicas imortalizadas por ninguém menos que o grande cantor Frank Sinatra.
Quando todos esperam algo de Dylan (especialmente uma militância política), ele parece não esperar nada de ninguém e muito menos de si mesmo. Dylan aparece acreditar apenas na música, a música que é uma forma de oração, de poesia, sem dúvida de literatura e de arte. Cantar talvez seja para Dylan uma forma de voltar ao passado, de se divertir, de viajar, mas também, claro, de protestar.
Por isso tudo, o grande mérito de Bob Dylan seja mesmo – há pelo menos 50 anos- conseguir tão bem iludir a esquerda e desiludir a direita. Para isso ainda não inventaram um prêmio.
Referências Bibliográficas
BERG, Amy J. Documentário: Janis Joplin: Little Girl Blue (2016)
GILMOUR, Michael J. The Gospel according to Bob Dylan: The Old, Old Story of Modern Times. Westminster John Knox Press, NYC. 2011.
*Ariel Finguerut é Doutor em Ciência Política pela Unicamp, pesquisador do Projeto Sem Diplomacia/ Unesp.