A Assembleia Nacional da Venezuela, cuja maioria foi conquistada pela oposição nas eleições de dezembro de 2015, fez um movimento bastante ousado no último domingo, dia 23 de outubro. Em sessão extraordinária, foi aprovado um acordo para restituição da ordem democrática, acusando o governo de Nicolás Maduro de desrespeitar a Constituição e, portanto, infringir um golpe contra a democracia no país. Esse documento, entre outras coisas, conclama as Forças Armadas a desobedecerem as ordens do Executivo e o povo a sair às ruas. Todo esse imbróglio entre governo de oposição pôs fim a um breve período de distensão, que ocorrera com a soltura de políticos de oposição que estavam encarcerados, como do ex-governador de Zulia e ex-postulante à presidência da República Manuel Rosales.
As alegações do Legislativo vão desde argumentos frágeis como uma suposta nacionalidade colombiana do mandatário (tese que já foi desmentida pela chancelaria do país vizinho) e “abandono” de cargo, decorrente da viagem presidencial ao Oriente Médio até, finalmente, um motivo mais consistente que se refere à anulação do processo iniciado para a convocação de um referendo revogatório de mandato. Para que possam acionar esse dispositivo constitucional, os opositores ao governo deveriam coletar assinaturas de, pelo menos, um por cento do eleitorado. No entanto, segundo as averiguações do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), órgão autônomo responsável por todo o processo eleitoral no país, haveria sérias fraudes na lista de assinaturas entregues pela Mesa de Unidade Democrática (MUD), principal coalização antichavista.
Dos 1.957.779 registros coletados, mais de 11 mil seriam de pessoas já falecidas, 3.000 documentos de identidade inexistentes ou de menores de idade e mais 1.300 condenados pela justiça, o que configuraria mais de 30% do total de assinaturas irregulares. Por um lado, é difícil acreditar que em um cenário de tanto descontentamento com o governo, a oposição não fosse capaz de atingir o número mínimo exigido pela lei, por outro a disposição de chavistas e antichavistas em recorrer a métodos duvidosos tem sido evidenciada a cada dia, o que tampouco elimina a possibilidade real de fraude. O governo, por exemplo, tem exaustivamente utilizado da prerrogativa constitucional de “emergência econômica”, que permite ao Executivo tomar decisões em matéria econômica sem necessidade de consultar o Congresso, para alijar a oposição de qualquer tipo de intervenção neste tema tão sensível.
Ainda que recorrendo a um recurso legal, o governo tem buscado minar os poderes da Assembleia Nacional o que, portanto, significa um desrespeito com o que foi sinalizado pelas urnas em 2015, em que se demonstrou que a própria população não via nas propostas da coalizão governista uma saída para a grave crise econômica que assola o país. Da mesma forma, os demais poderes – sobretudo o Judiciário e o Eleitoral – tomam decisões que sistematicamente favorecem o governo de Maduro, o que aumenta os questionamentos em torno da independência dos poderes e justifica a ação perpetrada pela oposição na Assembleia Nacional.
A demora no processo de ativação do referendo revogatório tem sido apontada como uma forma que o governo encontrou de ganhar tempo para se beneficiar duplamente. Se convocado em 2016 e considerando um provável cenário de derrota de Maduro no referendo, a Constituição previa a realização de novas eleições, porém se ativado somente em 2017, Maduro poderia ser substituído pelo seu vice, não havendo mudança substancial no comando do país. Ademais, em um contexto de ascensão dos preços internacionais do petróleo, a Venezuela teria mais tempo para receber divisas adicionais e, assim, amenizar a crise interna o que, consequentemente, poderia ter reflexos positivos na baixa aprovação popular do presidente. Internamente, a decisão dos legisladores teve fortes reações, como a invasão da casa legislativa por um grupo de apoiadores de Maduro, ainda durante as discussões do domingo, e também protestos estudantis em apoio à Assembleia Nacional.
As Forças Armadas, por sua vez, evitam pronunciar-se sobre esses temas e ainda que existam indícios de que parte da cúpula militar esteja descontente com Maduro, os militares foram um ator-chave para o processo bolivariano desde a presidência de Chávez, não havendo elementos suficientes que indiquem que uma insubordinação. Diante de uma grave situação de disputa entre poderes legitimamente eleitos, a UNASUL, que desde o agravamento da crise econômica já vinha acompanhando de perto a situação do país, de modo a oferecer assessoria financeira e atuando como um ente moderador entre governo e oposição, deverá assumir ainda mais responsabilidades, em conjunto com o Vaticano, que enviou o representante do papa em Buenos Aires para a Caracas.
A ideia é que a comunidade internacional atue no sentido de tentar reativar os canais de diálogo entre a MUD e o governo de Maduro, entretanto em um cenário tão complexo é difícil prever se as partes estarão de fato dispostas a se ouvirem e, eventualmente, ceder em alguma posição. É importante notar que a movimentação da Assembleia Nacional abriu um precedente muito perigoso para a democracia venezuelana, pois pode levar a medidas ainda mais radicais por parte dos demais poderes constitucionais, como a própria dissolução do Congresso. Esse “xeque mate” da oposição poderia consumar um golpe que, no fundo, foi ativado pelos dois lados. Nesse verdadeiro cabo de guerra, marcado pela desinformação e jogadas extremas, quem sai perdendo é a democracia e, principalmente, o povo venezuelano.
*Carolina Silva Pedroso é Mestre e Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP)