Frequentemente, o imaginário popular se nutre de anedotas ou lendas associadas a uma figura histórica, seja um ditador ou um santo, seja um pintor ou um famoso bandido. Assim, o grande general e ditador da França, Napoleão Bonaparte, surge associado ao seu cavalo branco e Hitler à sua ridícula franjinha ou meio-bigode, além da aparência de psicopata. Com Francisco de Assis, santo padroeiro da Itália e famoso em todo o mundo não é diferente, pois ora é lembrado como o jovem rebelde que se despe diante do pai e foge de casa, ora como o que tinha capacidade de conversar com os animais. É por esse motivo que hoje, 04 de outubro, comemoramos não apenas o dia do santo, isto é, o dia de São Francisco de Assis, nascido em Assisi (Assis) em 1181, como também o dia dos animais. No entanto, a sua importância histórica vai muito além da lendária habilidade de comunicação com os bichinhos.
Francisco de Assis, antes de se tornar santo, era filho de um rico mercador chamado Pietro Bernardone, e desde a mais tenra idade começou a repudiar justamente o que era símbolo do progresso econômico da Baixa Idade Média na Europa, especialmente na Itália: a mercantilização da sociedade com a consequente ascensão da burguesia mercantil. Aos olhos do jovem Francisco, a igreja, que tão bem se adaptava aos novos tempos, tirando proveito da riqueza em circulação e se tornando igualmente rica e poderosa, estava se desviando da sua trilha original, que consistia em pregar a imitação de Cristo e, consequentemente, a total renúncia aos bens terrenos. Desse modo, depois de abandonar o lar paterno, funda uma irmandade de penitentes que pregava a pobreza absoluta, cumprindo à risca a famosa passagem do Evangelho de Mateus (19-21): “Vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres”. Inicialmente, a igreja, já temerosa de outros movimentos, tidos como hereges, que desafiavam a sua autoridade, não vê com bons olhos a inusitada e “radical” proposta de Francisco. Em 1210, porém, o papa Inocêncio III dá uma aprovação verbal à nova ordem monástica constituída.
Até a sua morte, em 1226, Francisco não conhece trégua na sua “guerra” contra o egoísmo e o excessivo apego dos humanos, sobretudo da igreja, aos bens materiais terrenos e, portanto, falsos, na visão cristã. Com o espírito de um verdadeiro revolucionário, ele não se contenta em espalhar a boa nova apenas pela Itália e pela Europa. Em 1219, dirige-se ao Egito para tentar, inutilmente, converter o sultão à fé cristã. Apesar do fracasso em disseminar a sua “visão revolucionária” para além das fronteiras europeias, Francisco volta para a Itália e consegue remediar e apaziguar as polêmicas que surgiram entre os seus correligionários. Elabora, enfim, uma nova regra que terá outra aprovação oficial, desta vez concedida pelo papa Honório III, em 1223, três anos antes da sua morte.
São Francisco foi também um dos primeiros poetas, talvez involuntário, da literatura italiana. A famosa oração “Cantico delle creature” (“Cântico das criaturas”), composta por volta de 1224, é considerada pelos críticos e historiadores como o primeiro texto poético escrito em dialeto da Úmbria, a região da Itália em que ele nasceu, com muitos latinismos. Apesar da beleza das imagens criadas pelo santo-poeta, em que se faz a louvação de todas as obras da criação divina em nosso mundo, a importância do “Cântico das criaturas” está mais limitada ao aspecto linguístico, pois se trata do primeiro exemplo de língua poética em um dos tantos dialetos italianos.
Na realidade, foi outro poeta quem realmente conseguiu magistralmente representar e imortalizar o espírito verdadeiramente revolucionário de São Francisco de Assis: Dante Alighieri. Na Divina Comédia, mais especificamente, no canto XI do Paraíso, o eu- poético, isto é, Dante, o personagem-viajante no mundo dos mortos, encontra no “céu” correspondente ao Sol, na visão cosmogônica medieval da época, São
Tomás de Aquino, importantíssimo filósofo e dominicano, que lhe conta, com todos os detalhes, a vida brilhante de São Francisco de Assis. Em poucas palavras, não há um encontro direto entre o personagem Dante-viajante e o santo “poverello”, como ocorre em quase toda a Comédia, bastando lembrar os maravilhosos diálogos com Francesca, Farinata, Ulisses (que fala com Virgílio) e Conte Ugolino, no Inferno. A razão pela qual Dante não dá voz direta a São Francisco já foi brilhantemente analisada por Auerbach, o grande filólogo e crítico alemão, no seu livro Estudos sobre Dante. Auerbach atribui o malogrado encontro ao fato de que o poeta florentino queria destacar a missão que o santo teve sobre a terra, deixando de lado as lendas a ela associadas que já circulavam imediatamente após a sua morte. Se for possível acrescentar algo ao brilhante ensaio do crítico alemão, podemos pensar também que o autor da Comédia quis, na verdade, ressaltar o caráter verdadeiramente inovador, criativo das ideias de São Francisco. Ora, por razões de modéstia e de necessária autocrítica e imparcialidade, próprias de um homem sábio e consciente da sua missão, o próprio Francisco não poderia ter apresentado as suas propostas revolucionárias, tornando explícito o seu papel de “agitador” e de “contestador” da rígida hierarquia eclesiástica. Sendo assim, para não parecer parcial e para não fazer “propaganda” política da visão franciscana, Dante dá voz a um dominicano, São Tomás, afiliado a uma ordem monástica que, na época, vivia às turras com os franciscanos.
Enfim, embora pareça simpática a associação com a imagem de santo protetor dos animais, a mensagem de São Francisco, o santo-poeta, tem um alcance muito maior e ainda é atual. Foi graças à genialidade de Dante que, com seus brilhantes versos, o espírito inovador de São Francisco foi imortalizado. Dante, enfim, nos faz lembrar o verdadeiro líder revolucionário que se escondia por trás das anedotas e lendas que a tradição popular até hoje conserva.
*Professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.