Em 04/11/1966, a cidade de Florença, berço do Renascimento, além de uma das cidades do mundo com maior quantidade de obras de arte por metro quadrado, amanheceu alagada pelas águas do Arno. O famoso “alluvione” (inundação) não poupou as obras de arte das igrejas próximas ao histórico rio e os preciosos e raros livros da Biblioteca Nazionale Centrale, a mais importante da Itália, com um acervo de quase 10 milhões de volumes. Uma verdadeira catástrofe que despertou desejos de solidariedade de milhares de pessoas, sobretudo jovens, no mundo todo. Formou-se um verdadeiro exército que até recebeu o apelido de “gli angeli del fango”, isto é, os “anjos da lama”, que não mediram esforços e literalmente arregaçaram as mangas para salvar o que ainda podia ser salvo. Até hoje, porém, restam, por exemplo, obras raras na biblioteca que ainda estão sofrendo um lento processo de restauração. No entanto, outras não tiveram a mesma sorte e perderam-se para sempre.
Apesar dos danos materiais, quase não houve vítimas. A vítima maior foi mesmo a arte em todas as suas manifestações possíveis. O patrimônio livresco, feito de material perecível e delicado, talvez tenha sofrido mais do que todos os outros. Duas coisas impressionam nesse triste episódio que hoje completa meio século: a impressionante solidariedade demonstrada e as profecias da Divina Comédia, do florentino Dante Alighieri, que por vias diretas e indiretas aludem à destruição de Florença e de Pisa.
Com relação aos gestos solidários dos jovens, vale ressaltar que os loucos anos 60 foram marcados pela contracultura hippie e pelos exacerbados protestos estudantis que culminariam no famoso maio de 1968 em Paris, espalhando-se por toda a Europa e por boa parte do mundo. No entanto, esses jovens “alienados” ou, no extremo oposto, menosprezadores da arte “burguesa”, fruto de injustiças sociais e de exploração de trabalhadores, colocaram acima de tudo o amor pela arte e pela cidade que praticamente é símbolo da atividade artística, concentrando tesouros inestimáveis e de interesse mundial. Eles deram, portanto, um exemplo de que é possível superar divergências e interesses mesquinhos quando se corre o risco de perder um patrimônio único. Pena que sejam necessárias catástrofes, naturais ou não, para que os seres humanos se deem conta da estupidez e da insensatez de muitas diatribes político-ideológicas ou de outra natureza!
Com relação às profecias da Divina Comédia, é curioso notar que a que profetiza a futura destruição de Florença, no canto XXVI do Inferno, aquele do famoso episódio de Ulisses, se refere à destruição futura supostamente deflagrada pelo ódio das cidades vizinhas submetidas ao poder hegemônico de Florença na época (a Signoria). No caso, o personagem-viajante Dante, indignado com a quantidade de ladrões e trapaceiros florentinos no Inferno, sobretudo no canto imediatamente anterior, exprime o seu rancor e deseja que a pequena cidade de Prato, e não outras mais poderosas, destrua completamente Florença e ponha fim aos muitos pecados que o progresso material comporta, ao menos na visão franciscana do divino poeta.
A profecia que se refere à inundação do Arno se refere, na verdade, a Pisa, que também é atravessada pelo rio que ali perto, nas águas do Tirreno, encontra a sua foz. Após narrar os horrores do episódio do Conde Ugolino, obrigado a morrer de fome junto com os seus filhos, dentro de uma torre, o eu poético deseja que as ilhas próximas à foz do Arno formem uma espécie de dique com a finalidade de alagar toda a cidade, destruindo tudo e todos. As duas famosas invectivas, contra Florença e contra Pisa, evidenciam a indignação de Dante com a sua época, de forte progresso material, mas também de inesgotáveis conflitos entre facções e de guerras constantes entre as Comunas da Itália.
Concluindo, parece que as profecias de Dante não se enganaram, pois se dirigiam diretamente à sua cidade natal, que o mandou para o exílio, e para Pisa, que permitiu a morte de gente inocente (os filhos de Ugolino) dentro de uma torre e da pior forma possível. No entanto, seis séculos e meio mais tarde, as águas do Arno fizeram mais estrago em Florença do que em Pisa, destruindo ou danificando parcialmente símbolos de uma época próspera, mas condenável, na visão do autor. Talvez sirva de lição para Dan Brown e para as suas mistificações sobre a obra-prima do poeta florentino: as profecias da Divina Comédia podem ter errado no método de destruição, mas quase acertaram em cheio o alvo!
*Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.