Dia 2 de dezembro de 2016, comemora-se 100 anos da gravação de “Pelo telefone”, do sambista Donga, considerado o primeiro samba e cuja letra faz apologia aos jogos de azar ao citar ironicamente a polícia, que, naquele período, perseguia os negros ligados às rodas de samba.
Donga conta a história entre a polícia e os primeiros sambistas cariocas. Segundo ele, toda vez que um homem, na maioria das vezes negro, era apreendido pela polícia por ociosidade, uma das primeiras providências tomadas era verificar se possuía calos nas pontas dos dedos. Em caso afirmativo, concluía-se que o preso tocava violão. E aí, nas palavras do sambista, “era pior do que ser comunista”.
Dona Maria Esther, sambista de Pirapora de Bom Jesus e viúva de um escravo, chegou a ser presa em uma das suas apresentações, mas fugiu e “pulou a cerca do quartel”. Pendurada na cerca, para afrontar o policial, disse que fez um refrão que até hoje é cantado nas apresentações: “Se o senhor soubesse o valor que o samba tem, largava a delegacia e vinha sambar também”. O samba, como é feito hoje na cidade de Pirapora, continua relatando em suas letras a vida cotidiana, que é compreender o comum, as pessoas. O dia a dia pode ficar mais simples quando manifestado em forma de poesia ou música. Pode-se, nesse sentido, partir da hipótese de que o samba, além de operar como uma forma de devoção ao Bom Jesus, também contribui para o fortalecimento de uma identidade cultural comum a estes negros, que têm como costume frequentar anualmente a cidade nos dias de festa. A linguagem utilizada nas canções permite traduções do Samba Caipira para a linguagem do samba e da vida atual, apesar das músicas terem sido compostas há décadas e sem autoria estabelecida ou reconhecida.
O ritmo ainda sofre preconceito e retaliação. Sofre porque quando o povo africano forçosamente veio pro Brasil e era (e ainda é) descriminalizado, cantava em suas rodas, aos batuques de umbigada, versos africanos regados à pinga, para esquecer as dores do corpo depois de um longo e difícil dia de “trabalho” (escravo!). Muito se fala sobre o samba. Ora discriminado e tido como manifestação negativa, hoje pode ser reconhecido como comunicação expressiva daquela e desta época. Alguns julgam o novo formato que ele assumiu ao longo dos anos por conta das influências (novamente) dos ritmos estrangeiros, outros da comercialização que o ritmo adquiriu quando agregou às suas letras problemas conjugais, de cunho afetivo ou emoções extremas, como traição, amor não correspondido ou triângulos amorosos.
O carnaval também leva o nome do samba às grandes mídias e também sofre discriminação quando são revelados os milhões investidos no evento, as condições de vida dos sambistas e da comunidade que, sem ganhar nada em troca, se desdobram para conseguir uma boa pontuação na avenida.
O ritmo, hoje popularizado e que ganhou outras particularidades, tem seus admiradores e consumidores. Seja ele em formato de samba ou de pagode — ritmos que andam juntos — o samba assumiu-se brasileiro, pois foi configurado aqui, com influências africanas. O samba como processo comunicacional se construiu em uma dinâmica ao mesmo tempo dialógica, juntando referências, práticas e textos culturais distintos e de resistência, pois se tratou de um modo de vivenciar a cultura expatriada dos escravos africanos, em suas raízes e origens. Mas o samba é nosso, é brasileiro.
*Professora e mestra em Comunicação e Cultura pela Uniso. (jessica.raszl@prof.uniso.br )