O pai da medicina, Hipócrates, ensinava que o corpo humano produz quatro secreções: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. São nossos humores. Se estiverem em perfeita harmonia, ótimo: estamos bem de saúde. Mas se a mistura dos quatro fluidos for alterada, haverá problema: frieza, cólera, melancolia. Nasceu daí o sentido de humor como sinônimo de estado de espírito ou de ânimo da pessoa, um bem-estar físico e emocional, que a gente deveria procurar manter sempre. Quem o consegue tem senso de humor, coisa bem diferente de humorismo, o jogo mental utilizado, aqui e ali, para fazer piadas e produzir o riso.
Não é preciso ser engraçado para ter senso de humor. Basta levar a vida a sério, mas sem deixar de rir, antes de mais nada, dos próprios tropeços e limitações. Essa autoaceitação equilibrada pode até aumentar a própria longevidade. É o que dizem recentes pesquisas: “”o humor das pessoas pode interferir na produção e na liberação de hormônios que controlam fatores de risco e de proteção para o corpo.””
Tratando de senso de humor, pareceu-me interessante focar duas personalidades famosas no momento atual: o papa Francisco e Donald Trump. O primeiro se mostra, exemplarmente, compreensivo, com autodomínio, persistente, sabe sorrir e não faz tempestade com copo d”água, apesar de todos os problemas da Igreja e do mundo presente. O outro, para meu estupor, foi considerado pelos especialistas como o candidato à Casa Branca que sabia lidar melhor com o senso de humor, nas redes sociais, mostrando-se um mestre na arte de entreter o público desencantado com a política, tornando-a menos chata.
Encerrada a eleição, ou os entendidos se enganaram ou o homem os enganou. Fico, então com Francisco. Seu exemplo cai bem neste ano-novo. O que vem aí não estará desacompanhado de problemas, mas por que imaginá-lo assustador e insuperável? Melhor que alimentar ansiedades é projetá-lo como uma estrada, sem tirar nem por, de 365 dias a vencer. Ela começa com um convite claro e incontornável: réveillon (acordemos), Essa palavra francesa, usada para marcar a ceia e a festança da passagem do ano, em plena meia-noite, pode também representar um simpático imperativo para que iniciemos, confiantes, a caminhada anual, olhos bem abertos, com eventuais piscadelas de bom humor às inevitáveis pedras do caminho.
E, como nada se faz de bom sem prévia preparação, seria altamente recomendável que de vez em quando a gente rezasse a Oração para pedir o bom humor criada pelo inesquecível Tomás Moro e recomendada por Francisco:
“”Senhor, dai-me uma boa digestão, mas também algo para digerir. Dai-me saúde do corpo, mas também o bom humor, necessário para mantê-la. Dai-me, Senhor, uma alma simples, que saiba aproveitar tudo o que é bom, que não se assuste quando o mal chegar e assim encontre o modo de colocar as coisas no lugar. Dai-me uma alma que não conheça o tédio nem os resmungos, as mágoas e os lamentos, e não permitais que eu me atormente demais com essa coisa complicada chamada “”eu””. Dai-me, Senhor, senso de humor. Concedei-me a graça de apreciar o que é divertido, para descobrir na vida um pouco de alegria e também para partilhá-la com os outros. Amém.””
*Reitor da Universidade de Sorocaba (Uniso)