Muitas são as obras que foram escritas na literatura moderna sobre a guerra e a experiência humana que ela envolve. Poucas, porém, se propõem ou conseguem ultrapassar aspectos relativos, restritos ou específicos dessa vivência e das projeções imaginativas que elas suscitam à veia criadora dos ficcionistas, seja no plano histórico, social e político, ou no âmbito vivencial e psicológico de suas personagens, trançadas na atmosfera necessariamente rarefeita da escritura transcriativa e de seus simbolismos. Da expressão coletiva e individual que as duas grandes conflagrações do século 20 tiveram na produção ficcional, a primeira encontrou o seu marco sobretudo em Nada de Novo na Frente Ocidental, de Erich Maria Remarque, e a segunda, apenas parcialmente, pois seu recorte temático é o da luta norte-americana no Pacífico, em Os Nus e os Mortos, de Norman Mailer. Porém, nenhuma delas possui a amplitude e a abrangência de Vida e Destino, de Vassíli Grossman, que, no entanto, tem o seu par e talvez o seu modelo em Guerra e Paz, do autor, igualmente russo, Leon Tolstói.
Mas, sem entrar nos possíveis paralelismos, que começam pela personificação em dois grupos de famílias, os Volkonsky-Rostov, de Tolstói, e os Chapóchnikov-Chtrum, de Grossman, o fio narrativo desenvolve em subtexto, mas também explicitamente, uma crítica psicológica, social e política, não menos aguçada em ambos, embora a filosofia de vida e os valores que os presidem difiram, como não poderia deixar de ser em se tratando de dois universos humanos, ainda que ambos russos, em estágios de sociedade e natureza de conflitos inteiramente diversos.
Grossman põe em cena o mundo soviético no período de Stálin e o seu confronto com a Alemanha de Hitler. O polo magnético para o qual convergem todos os fios deste recontro é também aquele em que o processo histórico do século 20 trava a batalha decisiva, por suas consequências não só na Europa, como, pode-se dizer hoje, sem medo de exagero, no mundo. Para tanto, Vassíli Grossman reúne, de um lado e de outro da refrega, um conjunto de actantes representativos de suas sociedades e do feitio que apresentam então. Assim, temos um físico, um historiador, soldados e generais russos e alemães, um coronel das forças blindadas soviéticas, um oficial da SS entre cujos feitos de glória figurava o fato de ser um dos construtores de Auschwitz, velhos bolcheviques com sua fé inabalável e novos aparatchnikes com o seu pragmatismo corrupto, além de uma galeria de homens e mulheres, de todas as idades, das mais variadas condições psicológicas, no desempenho das ações e comportamentos humanos de que são agentes, os quais colocam à frente do leitor todas as gradações, nas suas cores mais elevadas e mais baixas de uma tormenta cataclísmica. Cento e cinquenta e nove integrantes de maior ou menor relevo e expressão no enredo compõem a cena dramática desta escritura.
O romancista oferece na carne e no sangue de suas personagens o centro vital da resistência contra o nazismo. Aí, do fundo mais desesperado da derrota, brota a resistência inquebrantável, que é a luta do povo nas ruínas de Stalingrado. Ele vence. Mas, novamente nos quadros desse triunfo, suas ações não se esvaem na vacuidade do heroico – tecidos por um realismo “carnal” sem concessões – e estão além do verossímil como encarnação do real. Essa narrativa, porém, tem sua contrapartida na exposição de outras realidades que afloram de seu subsolo soviético, não menos terríveis por sua natureza opressiva e esmagadora, ditadas por uma visão ideológica que deturpa o sonho do humanismo igualitário e socialista para transformá-lo em uma máquina totalitária de domínio do homem pelo homem. O autoritarismo, a alienação burocrática, o antissemitismo discriminatório, a tirania escravizante, a liberdade de opinião sufocada agridem, corroem e destroem a sociedade e os valores da pátria do povo vencedor.
Esta contradição entre a proposta pragmática da ideologia leninista-stalinista, soi-disant marxista, e a realidade da prática política e socioeconômica do regime instaurado, é exposta por dentro, na singularidade das criaturas, no latejar de seus valores, paixões e dramas pessoais. Revestindo-a da pele, da carne, das feições e dos interesses de suas personagens, Vassíli Grossman dá-lhe a pulsão e a projeção de suas individualidades no jogo do amor, da ambição, do sacrifício e do desengano, no jogo enfim dos desejos e desígnios imbricados na dinâmica dos processos coletivos do povo, da sociedade e da nação, focalizados num embate de vida e morte, no espírito de resistência em face da barbárie da guerra e na monstruosidade do nazifascismo.
Esse é o destino da vida, ou melhor, é a luta da vida contra o destino que se lhe pretende dar. Daí por que Vida e Destino, de Vassíli Grossman, na tradução cuidadosa e competente de Irineu Franco Perpetuo, merece a leitura e a reflexão de todo aquele que queira, de algum modo, penetrar pelos caminhos do homem na história de suas buscas de si, de seu sentido e de seu destino…
*Professor Emérito da Escola de Comunicações e Artes da USP