As companhias aéreas brasileiras demitiram desde o início de 2016 mais de 600 mecânicos de manutenção preventiva de aviões que ficam nas pistas dos aeroportos, segundo o Sindicato Nacional dos Aeroviários – sendo 550 demissões em 2016 e mais de 60 em janeiro de 2017. A entidade diz que, em alguns casos, o próprio piloto tem feito parte do trabalho de vistoria.

As companhias confirmam reestruturação no quadro de funcionários, mas dizem que as mudanças não afetam a segurança e que mantêm mecânicos nas pistas. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) afirma que aeronaves estão mais modernas e não há exigência de um mecânico para a tarefa de inspeção.

Toda vez que um avião comercial pousa em um aeroporto do país, um profissional verifica se está tudo em ordem para que ela possa decolar em seguida com passageiros. Ele é chamado de mecânico de pista ou mecânico de linha. Ele fica na pista do aeroporto: acompanha a chegada do avião, vistoria a fuselagem externa e os sistemas hidráulico, elétrico e pneumático e analisa as luzes e equipamentos de navegação, como superfícies de comando e asas, identificando eventuais riscos e danos. O salário do mecânico de pista iniciante varia de R$ 2.700 a R$ 3.600, mas pode chegar a mais R$ 7 mil, dependendo do tempo em que trabalha na empresa.

Demissões

Números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho e Emprego confirmam os números do Sindicato dos Aeroviários. Em 2016, foram dispensados 1.319 mecânicos de manutenção de aeronaves (englobando mecânicos de pista e hangares): 874 demitidos e 230 tiveram contratos encerrados. As demissões ocorreram em sua maioria em: São Paulo (519 dispensados), Rio de Janeiro (295), Rio Grande do Sul (164), Goiás (141) e Minas Gerais (44).

Demitido em junho de 2016, após 5 anos trabalhando em aeroportos pela Gol Linhas Aéreas, um mecânico que preferiu não ser identificado relata como era o seu trabalho. “Quando a aeronave estaciona, orientamos a colocação de calço e entramos em contato com o piloto para ver se a aeronave teve alguma pane durante o voo. Se houve, vamos sanar o problema como prioridade. Se não houve, começa o procedimento de verificação visual de toda a asa, empenagem, fuselagem, e sistemas do avião, como pneumático e hidráulico, para verificar se não tem vazamentos, por exemplo”, explica.

 

“Se não for possível sanar uma pane, nós temos que segurar a aeronave em solo se houver risco.”

A retirada deste profissional dos aeroportos é polêmica e está provocando uma discussão entre entidades sindicais, a Anac e as empresas aéreas. Isso porque o trabalho passou agora a ser feito por funcionários terceirizados, profissionais sem formação técnica e, em alguns casos, pelo próprio piloto, explica o diretor do sindicato José Ivânio Gonçalo da Silva, que também integra a Associação Brasileira dos Mecânicos de Manutenção.

“Em alguns casos, um profissional sem formação em mecânica, ou o despachante, realiza parte das atividades. Em uns aeroportos, empresas terceirizadas são contratas para fazer outra parte do serviço. E há algumas bases de algumas companhias, em aeroportos menores, em que até ocasiões em que o próprio piloto ou o copiloto estão fazendo parte do trabalho do mecânico, como o “walk around” (do inglês, caminhar ao redor)”, afirma Silva.

O procedimento de caminhada e verificação externa da aeronave é necessário para verificar danos que ocorreram enquanto a aeronave estava voando “e que os manuais dos fabricantes não podem prever”, afirma o diretor do sindicato, como raios, danos estruturais, ou outros causados por impactos de aves, que podem até entrar na turbina e atrapalharem um novo voo. Em fevereiro de 2016, a turbina de um avião da Gol pegou fogo durante a decolagem. Foi o mecânico quem percebeu o problema.

Após a vistoria da aeronave em solo, o mecânico acompanha também abastecimento, faz contato com o piloto e decide a quantidade de combustível que deve ser colocada, conforme o peso da aeronave. “Depois que o avião é liberado, acompanhamos até a cabeceira de pista e o acionamento dos motores. Só pelo barulho a gente conhece se o motor está em ordem ou se tem algum problema que tem que impedir a decolagem”, salienta o mecânico demitido pela Gol em 2016.

A Anac informou que “a maioria das aeronaves em operação regular no Brasil não requer a inspeção de pré-voo, pois os avanços tecnológicos permitiram novos procedimentos de manutenção sem comprometer a segurança das operações” e que também não há exigência regulamentar de que as tarefas de atendimento de solo de aeronaves em aeroportos sejam realizadas por mecânicos de manutenção (leia mais abaixo).

Mas, para tentar impedir que as demissões continuem, o sindicato, em conjunto com entidades integradas por mecânicos de aeronaves, lançou a “Frente Nacional pela Manutenção da Aviação Segura”. O objetivo é debater ações para manter a profissão de mecânico de aeronaves. “Lançamos a frente para trabalhar de forma permanente junto ao Congresso Nacional contra a retirada deste profissional, que é indispensável para análise da aeronave em solo e que possui vasto conhecimento técnico”, afirma Sérgio Dias, presidente da Federação Nacional dos Trabalhadores em Aviação Civil (Fentac/CUT).

“Tivemos muitas demissões no ano passado. Algumas empresas usam agora o ‘orange cap’ (boné laranja, em inglês) ou ‘blue cap’ (boné azul, em inglês), agentes que atuam na pista acompanhando a colocação das bagagens e o serviço de rampa, ou como despachante, e que podem realizar atividades que antes eram do mecânico de pista. Onde não houver este profissional, até o piloto está vindo a fazer parte da verificaçao”, salienta Dias. 

Curso

A licença de mecânico de manutenção é concedida pela Anac e depende do modelo de aeronave em que ele irá trabalhar. Cada curso específico dura no mínimo 13 meses, sendo necessário mais um ano de estágio. Em alguns casos, o mecânico precisa de até 5 anos de estudo. 

Sérgio Dias, presidente da Federação Nacional dos Trabalhadores da Aviação, destaca a necessidade da manutenção do mecânico na pista. “O piloto até pode saber fazer uma verificação externa, mas ele tem outra formação e outra função. É uma sobrecarga. Se, por acaso, a aeronave fizer um pouso mais duro, pode trincar a fuselagem, romper cabo, estourar um pneu. O mecânico de pista é capacitado para identificar anomalias e avisar antes”.

Mecânico de aeronaves de companhias aéreas há 31 anos, já tendo atuado em diversas empresas tanto no hangar quanto na pista, Jefferson Bomfim também demonstra o diferencial deste profissional. “Se, por exemplo, um piloto ou despachante percebem um corte leve numa roda em uma vistoria, podem liberar a aeronave sem saber o potencial de dano ou de um acidente aéreo que isso poderá provocar na corrida de decolagem ou em voo depois. O mecânico faz medições de pressão. Ele é um técnico e está preparado para isso”, defende.

Impacto não analisado

 

O diretor de segurança de voo do Sindicato dos Aeronautas, comandante Mateus Ghisleni, diz que “até hoje não foi apresentado nenhum documento sobre quais impactos a retirada” do mecânico de solo teria na estrutura aeroportuária.

“É temerário apoiar qualquer iniciativa de mudança sem ter certeza de que os níveis de segurança operacionais permaneçam inalterados”, diz. “Algumas empresas já fizeram reestruturação na parte de manutenção, mas isso não foi discutido com a sociedade. Não se sabe se este remanejo tem relação com a redução dos postos de trabalho ou com a nova ideia de reestruturação do setor”, salienta o comandante. 

Enquanto as empresas alegam redução de custos e melhoria tecnológica das aeronaves para retirar o mecânico, a Anac diz que não há regulamentação exigindo a permanência deste profissional e que sua necessidade depende das recomendações do manual do fabricante do avião. 

Segundo a Anac, a regulamentação nacional não proíbe a terceirização de atendimento de pista nem de manutenção e “as verificações conhecidas como “walk around” podem ser executadas pelos pilotos, conforme estabelecido pela maioria dos fabricantes de aeronaves”. A agência assegura que “permanece atenta na supervisão das empresas aéreas” e realiza fiscalizações periódicas e que não constatou “degradação dos níveis de segurança operacional nesse assunto”.

“Na regulação da aviação civil não existe a figura de “mecânico de pista”. A regulamentação prevê que as empresas aéreas tenham profissionais competentes para prover o atendimento de pista. Com relação ao atendimento de solo, quando não forem atividades classificadas formalmente como tarefas de manutenção, é necessário esclarecer que, pela regulamentação vigente, não se faz necessário que tais atividades sejam obrigatoriamente desempenhadas por mecânico de manutenção aeronáutica habilitado pela Anac”, informou a agência.

A discussão chegou até à Câmara dos Deputados, onde a Comissão de Viação e Transporte realizou uma audiência em agosto de 2016 para debater o fim da inspeção em solo. Na sessão da Câmara, o então vice-presidente do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias (Snea), Ronaldo Jenkins, reforçou a tese de que as aeronaves modernas não mais precisam da inspeção em solo.

“Essas aeronaves mais modernas e que têm sistema de monitoramento remoto, o manual de manutenção delas não prevê inspeção no solo. Essa situação já é feita em vários países do mundo. Não é uma questão de economia, mas de tecnologia”, afirmou Jenkins na ocasião. Discutiu-se ainda a possibilidade do próprio piloto realizar estas verificações.

O sindicato das empresas aéreas diz que, agora, o entendimento sobre o debate é individual de cada companhia. O Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), ao ser perguntado sobre se a mudança interferiria na segurança do espaço aéreo do país, disse que “as empresas possuem setores destinados ao gerenciamento da segurança operacional, os quais são responsáveis por avaliar os impactos decorrentes da adoção de novas medidas”.

Em janeiro deste ano a Anac realizou um workshop de manutenção preventiva para pilotos, com o objetivo de aprimorar a legislação permitindo que os pilotos proprietários de aeronaves pudessem fazer a manutenção do avião que comandam com frequência e do qual são donos. Mas debateu-se a possibilidade de pilotos comerciais poderem fazer a manutenção preventiva

 

Companhias aéreas

 

Questionadas sobre as demissões, as maiores companhias aéreas operando no país confirmaram ajustes em seu quadro, mas ressaltaram que as mudanças não afetam a segurança. A Azul afirmou que, em 2016, não reduziu o número de mecânicos, mas que houve um “turnover natural”, salientando que “mantém o número adequado de mecânicos na área de manutenção de aeronaves em todas as localidades onde opera” e em conformidade com a regulamentação da Anac.

A Gol respondeu que “possui em todos os aeroportos onde opera no país mecânicos próprios para a manutenção e revisão de suas aeronaves” e que “não extinguiu ou irá extinguir qualquer categoria de profissionais”.

A Avianca disse entender que “é possível a distribuição de tarefas efetivamente necessárias durante as operações de trânsito, que atualmente são executadas por mecânicos, de forma sejam executadas por profissionais com qualificações e treinamentos específicos para suas realizações”. Mas, salientou que “não possui processo para substituição de mecânicos” e que, até o momento, todas suas bases preveem atuação dos mecânicos nas inspeções.

A Latam Airlines respondeu que os ajustes que fez são para “eficiência” e que “as mudanças não colocam de forma alguma riscos à operação”.

Nas últimas 24 horas, houve dois incidentes com aviões na Grande São Paulo. Na quarta-feira (22), um avião da Latam apresentou problemas em uma das turbinas durante a decolagem no aeroporto de Congonhas, na Zona Sul de São Paulo. Nesta quinta-feira (23), um avião da Avianca retornou ao aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, após indício de fumaça na cabine.