Os últimos vestibulares, em que o sistema de “ações afirmativas” – vulgo, cotas – já se mostrou bastante ampliado no Brasil, incluindo até cotas que contrariam os fundamentos do SISU (Sistema de Seleção Unificada a partir do ENEM), como são aquelas que conferem bônus para estudantes de determinada região, revelaram uma face perversa dos mecanismos de compensação social: a insaciabilidade.
O discurso em prol da correção de distorções, injustiças sociais de longa data e privilégios de origem, por meio de artifícios para acelerar o enfrentamento das desigualdades, ganhou corpo nos processos seletivos das principais universidades do país. Sob o argumento de que não há mais tempo a esperar e de que não temos competência para corrigir de forma paulatina e sólida, desde os primeiros anos da escola básica pública, as diferenças trazidas pelo dinheiro ou pela proveniência, duas outras incongruências vêm passando ilesas.
No nosso país, mais do que em outros, não temos o salutar hábito de avaliar – ou ao menos tentar – de forma fria os resultados dos projetos que executamos, talvez por temor dos rótulos raivosos que correm pelas redes sociais: “complexo de casa grande”, “fascista”, “racista”, “reaça”, “elitista”, etc. As análises impressionistas, apaixonadas e emotivas, fundadas sempre em argumentos sociais tidos como irrefutáveis – a falta de oportunidades para os das camadas pobres da sociedade, por exemplo –, não nos têm permitido avançar um passo para avaliar se a universidade, escolhida no nosso país como o espaço prioritário para corrigir as desigualdades – apesar de estar no topo da cadeia da educação –, conseguirá cumprir tão heroica missão sem perder seu fundamento de origem: a produção de conhecimentos. Preservado ao longo de séculos, ainda que contando com funções agregadas – como a formação de quadros governativos, entre outros –, este fundamento garantiu às universidades o acúmulo de prestígio ao longo da história. Tanto que aqui, como ocorreu em outros países, se julgou por bem que ela deveria ser o lugar por excelência onde corrigiríamos as nossas mais diversas discrepâncias sociais: dos privilégios por raça, por condição financeira e até por região de nascimento.
Ainda não sabemos, entretanto, por falta de mecanismos, vontade ou coragem para avaliar, se fazer desta instituição de prestígio instrumento de combate ao passado das desigualdades é, por princípio, incompatível com aquela função que levou a universidade a ser a menina dos olhos dos reis ou governantes de outrora e o alvo dos desejos dos jovens das diversas partes do mundo. Talvez as faltas, carências, trazidas de um meio familiar que não foi ensinado a apreciar bens culturais ou de uma escola pública com aulas irregulares – em razão das greves periódicas, das ocupações recentes e do desprestígio do conhecimento erudito – e com professores mal preparados ou desestimulados possam ser compensadas ou corrigidas em 4 ou 5 anos. Mas, e se não forem? Estará a universidade ameaçada por não conseguir cumprir o que outras instâncias não conseguiram? Estará ela ameaçada pelo paradoxo de ser vencida pelo que deveria vencer, como ocorreu com a escola pública? Ou ainda, estará ela ameaçada de perder seu prestígio por desvio da sua razão de ser?
Outro dos impasses que vivemos diz respeito, em contrapartida, à referida insaciabilidade de qualquer sistema fundado em compensações – como aqueles de assistência social banalizados na última década –, sem uma data para acabar ou uma meta clara a ser alcançada – pois, certamente, é difuso demais deixar como meta o fim das desigualdades.
Por imprecisão ou vício de generalização (há já políticas de cotas na pós-graduação), ao invés de apenas incluir, como reza o discurso que sustenta os argumentos sobre a necessidade das tais ações corretivas, o sistema vem gerando, pelo que se pode observar, outros tipos de excluídos provenientes das escalas intermediárias da sociedade, isto é, aqueles que não são nem dos meios abastados da sociedade – a quem qualquer sistema é sempre contornável –, nem daqueles meios beneficiários das “ações afirmativas”. Esses que não são favorecidos com nenhum tipo de cota, porque estudaram em escola paga, ainda que barata e de qualidade duvidosa, viram suas famílias pouco opulentas se sacrificarem, mas observam hoje que tais renúncias de pouco lhe valeram. Suas famílias, privadas elas próprias de influência letrada, empenharam-se, com os recursos de que dispunham, para reverter a situação de seus descendentes. Viram, entretanto, que em um país pouco generoso com seus filhos, como o Brasil, há sempre alguém mais desvalido, e seus gastos e sacrifícios foram de alguma forma em vão.
Nessa competição entre gentes sem sorte de toda ordem, com mais ou menos cultura, abaladas igualmente saem as escolas privadas de ensino fundamental e médio, que nasceram elas próprias para tentar compensar as fragilidades da escola pública. Com seu ensino pouco diferenciado, assistem cada vez mais ao desaparecimento dos nomes dos seus alunos das listas dos aprovados nas universidades públicas de prestígio. O que será dessas escolas que recebem também estudantes que, apesar de poderem pagar algum quantum, não se diferenciam substantivamente daqueles que não podem pagar escola, pois também suas famílias não foram iniciadas na chamada cultura culta? Haverá para os seus alunos alguma brecha ou esperança?

*Professora Livre-Docente em História Medieval da UNESP/Franca