Que a carne é fraca todos nós já sabemos. Podemos retornar aos primórdios históricos e míticos, quando diz o texto sagrado que Adão resolveu comer a maçã, ele fez isso porque foi convencido por Eva. Esta, por sua vez, após ser irremediavelmente influenciada pela serpente age e muda a opinião de Adão. Daí ele come a maçã proibida e condena o destino das gerações posteriores. Qual o castigo em destaque? O trabalho, viver segundo as próprias forças foi a punição. Ou seja, este simples réptil demonstrou para a humanidade, na história bíblica, o quanto somos todos muito influenciáveis, dependendo das circunstâncias para nortear nossas ações. E que de nossas atitudes – e de nosso trabalho – dependerá o futuro de muitas pessoas.
Sim, somos fracos mesmo.
Essa verdade é mais do que cruel, chega a ser crua mesmo: em nome do dinheiro, muita gente vendeu carne estragada, carne adulterada. E, pasmem, não foi só carne bovina não, teve carne humana envolvida, pois tudo começou com a venda primeira de si próprio. E esquece a história do papelão, foi a própria carne o que entrou na negociata. Nada de embalagens, de papelão ou de plástico. Agora é carne viva essa que foge correndo dos mandados de prisão.
Fazendo outro giro pela história, percebemos que o modo de vida mudou bastante. SILVA (2007, p. 16) diz: “Considerando que a sociedade disciplinar regularizava a rotina das pessoas, a sociedade de controle regularizaria, então, as pessoas para a rotina, desde os seus primeiros anos de vida”. Só esclarecendo, Sociedade Disciplinar foi descrita por Foucault (1997) e é aquela do século XVIII, da Revolução Industrial, onde até as crianças eram trancadas nas fábricas trabalhando dezesseis horas por dia. Nada de ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, BRASIL, 1990) quem dirá de previdência social. Afinal, rico não precisa de previdência, rico precisa de pobre.
Então, voltando para nosso passeio pela história, se a tal sociedade disciplinar era responsável por regular a rotina das pessoas, dizer a que horas elas entravam no trabalho, quando podiam sair, o que podiam ou não fazer dentro da fábrica, agora isso mudou. Nada de comandar as rotinas se podemos controlar as pessoas! Dá muito trabalho erguer muros altos, punir com chicotadas… As pessoas ficam revoltadas, enojadas principalmente quando veem uma ferida sangrar e se juntam, até se tornam solidárias para mudar a situação. E a solidariedade é muito perigosa.
Então eis que vem a nova da sociedade de controle, criar um ser tão controlado, mas tão controlado para a rotina principal de ganhar dinheiro que ele simplesmente esquece de ser humano. Sabe-se que o servidor público responsável por fiscalizar os frigoríficos era bem remunerado pelo povo para fazer o seu trabalho. Mas ele precisava de mais dinheiro, infinitamente alimentado pelas propinas dos empresários que também não estavam contentes com os grandes lucros obtidos pelos vultuosos preços da carne boa. Dói na carne é saber que para não trabalhar direito, expropria-se o direito do outro.
Agora vamos pensar na sociedade de controle e as outras coisas que estão estragando ou sendo adulteradas. Internet, Skype, whatsapp, a gente manda bom dia para todo mundo, mas esquece de saber das condições de vida da nossa diarista. E sobre o grupo familiar, o que diríamos dele?
Recuperamos o contato com aquele primo perdido, achado via Facebook. Mas em que condições formamos as nossas crianças, aquelas chamadas de filhos e que moram com a gente? E as crianças que não moram com a gente? Aquelas que ninguém fala, que ninguém visita, que aguardam muitos anos por uma adoção, aquelas filhas da dona Miséria com o senhor Infortúnio, da história de vida emperrada pelo descaso e pela burocracia?
Afinal de contas, se somos mesmo muito influenciáveis, porque não comandar melhor as circunstâncias que nos fazem fazer o que fazemos e ser quem somos? Porque Deleuze (2001) já nos avisou que são as circunstâncias cotidianas que definem nossos interesses. Por que nos interessamos tanto em dinheiro e pouco em afeto?
Na sociedade contemporânea, o trabalho está mais para a origem etimológica da palavra, tripalium, um instrumento de tortura que esticava a pessoa até rasgar a carne. Pensando nessa cena lembrei dos sanguinários reis que proporcionavam uma carnificina para banquetear os olhos do povo. A história nos fala do “pão e circo”, diversão macabra que, entre assustados e entretidos, fazia da plateia cliente fiel. Ah, se essas coisas acontecessem hoje, (aliás, até acontecem, mas com roupagens mais limpinhas, até com cheiro de amaciante, enfim), após a passagem do leão muita gente ia tirar uma selfie. Dúvidas sobre isso? O horror também vende! E o que importa, na sociedade de controle, do capitalismo é a venda, não é a vida. Guattari (1987) também falou umas interessantes sobre isso.
Vamos pensar agora sobre as circunstâncias que estamos vivendo e fazem da gente o que a gente é. Vamos aprofundar e refletir no que estamos fazendo com quem depende da gente para estar no mundo, filhos, sobrinhos, pais idosos. De repente descobrimos nós mesmos transformados, carne exposta como o Krueger? Ele assustou muito os que já passaram dos trinta, pesadelo da época em que não existia classificação etária indicativa para filmes. Olhar no espelho não precisa ser uma experiência escatológica nem aterrorizante. Toda época tem seus avanços e retrocessos.
Contudo, é necessário fazer algumas rupturas. Coragem para assumir que a carne é fraca sim, mas podemos, por meio de um trabalho coletivo, com conceitos éticos e bases políticas solidárias, nos apoiar para ninguém cair tão baixo. Porque na queda pela busca frenética por dinheiro todo mundo perde tudo, inclusive, dinheiro. Os prejuízos chegam a todos, até aos que se acham por cima da carne seca.

Vivian de Jesus Correia e Silva é Mestra e Doutoranda em Psicologia e Sociedade pela Unesp de Assis.