Adilson Roberto Gonçalves*

Pássaro preto na gaiola./ Prisão do negro/…
Passo de um preto /…/passo preto de fuga /…
sociedade-gaiola / gaiola sem liberdade /…*

A epígrafe é dos primeiros versos escritos na adolescência, e foram motivados pela revolta do tratamento depreciativo e ofensivo dado a um cliente negro pelo gerente da loja em que trabalhava. A palavra que denuncia é também a que estereotipa. Três palavras serão analisadas com a preocupação reflexiva e de discussão, não linguística, filológica ou histórico-social.
Paradoxalmente, a maioria da população brasileira (51%, segundo último senso e com base na auto-declaração da chamada etnia) tem fisicamente incorporada alguma origem africana recente (dentro do último meio milênio), mas não está inserida na sociedade de forma proporcional. Após três séculos e meio de tráfico e escravidão, os negros foram deixados à própria sorte pelos rincões do país, constituindo a principal parte marginal e periférica da sociedade de hoje. Quando galgam posição de destaque, são vítimas de preconceito, verbalizado ou não.
O vocabulário discriminatório foi criado e manteve-se como uma das formas de estabelecer a distinção entre os antigos senhores e os atuais ainda-escravos de um sistema pós-escravocrata na letra da lei. O sistema, porém, era capitalista primitivo, com forte dependência da produção de mais-valia por parte dos que não tinham meios para reivindicar condições adequadas de trabalho. Nem, ao menos, sabiam ou entendiam o que seriam as relações de trabalho, uma vez que eram escravos. Assim, e como contínuo processo, o negro está pouco presente nas esferas políticas e governamentais, notadamente quando são espaços de decisão.
O mesmo quadro se repete nas ciências, no meio empresarial, nos ambientes jurídicos e acadêmicos, e até nos esportes, quando se excetua o atleta e avalia-se o empresário e o dirigente. Porém, é marcante sua presença nos presídios, no subemprego, residindo nas áreas de maior vulnerabilidade social e de insegurança pública. Fica à parte dessa avaliação, a dúbia relação do negro com as artes.
O estatuto da igualdade racial (Lei 12.288, de 20/7/2010) procura mitigar parte dessas injustiças, ainda que imperfeito e de aplicação limitada à boa vontade das classes dominantes. Referindo-se ao negro, nessa lei foi estabelecido, em seu artigo 1º, parágrafo único, inciso IV, que a definição de população negra é a que se auto-declara preta ou parda.
É por meio de políticas afirmativas que um pouco de compensações pode acontecer. Essas políticas afirmativas se travestem, a meu ver, de dupla função: a) possuir o sentido de ações positivas, como sinônimo de afirmativas, que venham a beneficiar o grupo alvo; e b) afirmar uma História e uma herança escravocrata e de violência contra negros e seus descendentes. Um dos exemplos de aplicação dessas políticas é o estabelecimento de cotas para ingresso no serviço público (Lei 12.990, de 9/6/2014).
Voltando à questão de palavras que definem – ou buscam definir – esses grupos, pardo remete diretamente a sujo, indistinto, vulgar, mas é o termo oficial (Lei 12.288, de 20/7/2010) para designar aqueles que possuem a cor da pele fruto da miscigenação entre negros e outros, como brancos, asiáticos e indígenas. Na esmagadora maioria dos casos, essa origem, em algum momento, foi fruto de violência sexual. Em contraponto, papel pardo é o papel de qualidade inferior, com aparência não refinada, como é o papel branco. À noite todos os gatos são pardos: a cor torna-se indistinta, igualando todos os seres – no caso, os gatos como metáfora de pessoas. Os pardais são o último exemplo, de ave comum, vulgar, além da cor também não destacada.
A etimologia da palavra mulato está ligada a mula ou mulo, o ser estéril, originário do cruzamento entre jumento e égua ou jumenta e cavalo. O termo contém tanto a ideia de híbrido, como a de infértil. O mulo foi personagem importante na trilogia de ficção científica A Fundação, de Isaac Asimov, mutante que seria o responsável pela conquista e submissão da civilização. E também infértil.
Até o final da adolescência, o termo mulato não possuía a conotação preconceituosa definida mais recentemente. Da mesma forma, a música que foi o símbolo da censura carnavalesca de 2017 (O teu cabelo não nega) era avaliada distintamente. A brancos de pele, a ação do sol apenas fazia vermelhidão e queimaduras graves.
Por meio da química, sabemos que quanto mais branco o produto, mais sujo fica o ambiente. Açúcar e papel são dois exemplos dos mais significativos. O tornar negro, preto, escuro resulta nos verbos denegrir, pretejar e escurecer. Enquanto os dois últimos são usados quase que exclusivamente em relação a cor e luminosidade, denegrir perpetuou a conotação de tornar algo sujo, feio, maculado.
Passou a ser condenado, dentro da discussão sobre preconceitos e das citadas políticas afirmativas. Porém, a origem da palavra não carrega o negro como critério social, e o rótulo de politicamente incorreto advém do julgamento do falante, muito mais pelo segundo significado apresentado anteriormente (julgamento pelos ouvintes).
Cegueiras em texto e contexto / feita a interligação / séculos se passaram a pretexto, / a escravidão, não**.
Palavras usadas não refletem, necessariamente, atitudes adotadas. Mesmo que haja controvérsias no significado existente ou atribuído às denotações correntes, é importante a discussão da origem das expressões, para uma reflexão constante, e melhor entendimento do que somos e para onde vamos. Injustificável é, pois, o país que tem como base social o teor de melanina na pele das pessoas.

*Doutor em química pela Unicamp, livre-docente pela USP