O Corpus Christi que passou me sugeriu a conversa de hoje. É que o nome latino dessa festa religiosa – Corpo de Cristo, em português – passa tão facilmente pela boca do povo, que fica a pergunta pela razão dessa naturalidade. A resposta é simples: o latim está em nosso DNA.
Essa explicação nos deu Bilac ao definir o portugês como “”a última flor do Lácio, inculta e bela””, querendo nos lembrar que a língua portuguesa veio do falar dos antigos habitantes daquela região de Roma, centro então do mundo ocidental. Daí por que palavras e expressões latinas povoam o vocabulário, não só de advogados e juízes, com seus habeas corpus, mas também no dia a dia de qualquer um de nós.
Para comprovação nada melhor que a palavra “”ônibus””, do latim omnibus, que significa “”para todos””. É puro latim. Há uns duzentos anos, surgiu na França esse carro grande, puxado então a cavalo, apresentado como veículo “”para todos””. É uma lástima que as autoridades públicas não usem esse meio de transporte. Não se incluem nesse “”para todos””, nem sequer para ver como a população sofre, com ônibus sempre super-lotado ou, às vezes, desaparecido, numa greve.
Mas o uso comum dessa palavra de outros tempos e lugares por cidadãos que nunca estudaram latim, me leva a refletir sobre a essência da palavra, de qualquer palavra. Num primeiro olhar, palavras seriam como moedas que a gente recebe, gratuitamente, usa e passa aos outros, sem nenhuma análise. Fazem parte do conviver social. Mas toda palavra tem sentido e tem função. Seja ela pronunciada como vocábulo ou apenas pensada como termo, toda palavra é um conjunto de sons ou de letras associado a uma ideia. Palavra é expressão do pensamento humano.
Na prática, porém, há palavras pensadas e outras, a maioria, simplesmente usadas, aquilo que Hamlet ironizou como “”palavras, palavras, palavras””. Mas não vivemos sem elas. Com elas se tece nosso perfil, nossa profissão, nossa história de vida. Pegue-se, por exemplo, a própria palavra ônibus: vou pegar o ônibus, perdi o ônibus, esse ônibus não chega, a patroa me paga o ônibus, de ônibus vou chegar atrasado… Como se vê, é palavra aparentemente banal, mas que descreve uma vida.
E elas não apenas descrevem nosso tipo de vida. Elas nos definem. Como ensina a sabedoria popular, o boi pega-se pelos chifres, o homem pela palavra, porque ela não só revela o que vai dentro da cabeça e do coração da pessoa, como também afirma o seu direito de se manifestar. Nesse sentido, há dois tipos negativos de pessoas: as que não prezam a própria palavra e as que não têm a própria palavra. Da primeira categoria são triste exemplo políticos que transformam os votos recebidos em credencial para enriquecer e mentir. E agirão assim enquanto sua base eleitoral for constituída de gente que não conseguiu ter a própria palavra, rebanho manipulável, sem luz própria, produtos de um falso processo educacional. O desenvolvimento nacional continuará travado, enquanto, na família, na escola e na igreja, perdurar o monólogo, onde só os educadores têm a palavra e os educandos apenas ouvem, memorizam e repetem. Precisamos superar a cartilha.

*Mestre em Filosofia e Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma