O toma-lá-dá-cá nas relações entre o Executivo e o Congresso nunca foi novidade, infelizmente. Eu estava no Salão Verde da Câmara quando o deputado petebista Roberto Cardoso Alves, em conversa com jornalistas lá nos idos da Constituinte de 1988, aplicou à prática política a máxima do “é dando que se recebe”, extraída da belíssima Oração de S. Francisco. O ditado colou, e virou símbolo do fisiologismo parlamentar por muitos anos. Na época, tratava-se de conseguir os votos do Centrão de então – olha que coincidência – para aprovar um mandato de cinco anos, e não de quatro, como previa o texto inicial da nova Carta, para o presidente José Sarney. Foi aprovado.
      
Só para ficar nos tempos pós-regime militar, vieram muitos outros episódios, frutos das mazelas do sistema político e eleitoral que nunca muda. Um deles, o escândalo da compra de votos na aprovação da PEC da reeleição, que permitiu que Fernando Henrique Cardoso tivesse um segundo mandato. Umas tantas votações no governo Lula, que tinha parte de sua base sustentada pelos mensalões posteriormente descobertos.
       
Mas bem que Delúbio Soares, o primeiro de uma linhagem de tesoureiros do PT que acabou enrolada na Justiça, avisou, num depoimento na época do julgamento do STF: um dia vão ver que o Mensalão era café pequeno.
       
Nada mais certo, premonitório até, se compararmos o escândalo de então com os que vieram depois, no rastro do Petrolão e das operações dos partidos e políticos investigados pela Lava Jato. Valores, métodos, grau de envolvimento dos parlamentares, cara-de-pau das defesas, o Mensalão parece mesmo brincadeira de criança perto do que veio depois.
       
Curiosamente, nas reações de partidos e políticos parecia haver mais pudor. Delúbio, por exemplo, foi afastado do PT, que trocou sua direção por causa do escândalo. Diretórios partidários expulsavam, conselhos de ética das duas Casas do Congresso puniam e seus plenários cassavam mandatos de acusados de corrupção – quando eles não renunciavam antes para escapar da inelegibilidade.
        
Só que, ao mesmo tempo em que, do lado de fora, a Justiça, o Ministério Público e a Polícia Federal foram se tornando mais rigorosos – sem dúvida, excessivamente, em muitos casos – os mecanismos de fiscalização e punição do Legislativo sobre os seus foram ficando mais e mais frouxos. Até chegarmos aos padrões de hoje, quando deputados e senadores não parecem mais preocupados em dar explicações à sociedade, e parece que nem sequer em manter as aparências. O velho fisiologismo nunca foi tão escancarado, e nem sua narrativa tão crua.
       
Não fosse assim, o deputado governista Darcísio Perondi (PMDB-RS) não teria tido a coragem, sem sequer ruborizar-se, de dar aos noticiários da TV Globo a seguinte explicação sobre o pagamento de emendas parlamentares em troca de votos para enterrar a segunda denúncia contra Michel Temer:  “É governo ou não é? Se é, tem que ajudar. Se não é, pode esperar: é pão e água”, decretou, com naturalidade.
       
Talvez o deputado, e boa parte de seus colegas, tenha se esquecido de que as populações dos municípios que serão beneficiados – ou não – pelas obras e emendas não têm culpa de nada e não merecem ficar a pão e água. Ninguém merece.
        
Ficamos a imaginar quais serão os efeitos desse escancaramento nos corações e mentes de quem está do outro lado da tela, às vezes sem nem pão e nem água. Por enquanto, parece haver só apatia. Mas a iniquidade dos comportamentos, a desfaçatez das explicações, o cinismo generalizado vão cobrar o seu preço.

*Jornalista